quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O menino feio

Pedrinho Feio 
Bruno Leandro 


Pedro era um garoto introvertido, não muito desenvolvido para a sua idade e sem habilidades atléticas. Preferia as matérias de raciocínio e lógica aos exercícios de educação física e não se enturmava com facilidade. Para uns outros, Pedro era um esquisito, um estranho. E feio.

Não demorou muito para que  garoto ganhasse um apelido maldoso na escola, chamado pelos colegas de “Pedrinho Feio”. Era humilhado todos os dias com esse apelido e, se fizesse algo errado, já diziam: “Tinha que ser o Pedrinho Feio”. Se fizesse algo certo, ninguém prestava atenção ou, por despeito, diziam que fora resultado de sorte.

Pedro vivia em um mundo onde os colegas de escola não eram estranhos, pois se vestiam iguais, todos com as mesmas roupas da moda, quando fora do colégio, e todas as meninas eram loiras ou morenas com o cabelo alisado e pesada maquiagem que as tornava perfeitas. Ele não era popular, pois a popularidade dependia de uma visão perfeita, dentes certos, altura e peso certos e, na medida do possível, músculos. Inteligência era valorizada, mas como um item opcional. Beleza era mais importante.

Um dia, cansado de ser alvo de pancadas verbais e físicas, de ser destratado por não se encaixar, Pedro teve uma crise. A gota d’água havia sido quando uma garota, de quem ele gostava em segredo, o humilhara na frente de todos os outros colegas, pois ele havia feito desenhos dela em seu caderno. Eram desenhos muito bons, mas isso só aumentou o nojo, pois o esquisito havia ousado ter um talento para capturar a perfeição.
Pedro chorou – e muito – naquele dia. Decidiu nunca mais voltar para o colégio e, sim, fugiu de casa. Deixou pra trás seus livros e sonhos, despedaçados por aqueles que o achavam indigno de ser tratado como igual.

Pedro arranjou emprego em uma fazenda, mentiu dizendo que era órfão e que precisava se sustentar. Conseguiu casa, comida e algum dinheiro. As pessoas não o olhavam de maneira estranha nem o tratavam de forma diferente por conta de sua aparência e ele se sentia em casa. Apesar disso, seu coração carregava uma ferida incapaz de sarar.

O tempo passou e, ao longo de dois anos, Pedro carregava pedras, alimentava o gado, consertava cercas, recolhia ovos de galinhas, tirava leite de vacas e ajudada nas colheitas. Reconhecendo nele um rapaz estudioso, seus patrões lhe deram livros, e Pedro não deixou de estudar, apesar de não mais pisar em uma escola, por medo de ser destratado como já o fora diversas vezes. Outra coisa que Pedro nunca mais fez, foi olhar em um espelho. Ele detestava a aparência capaz de causar asco nos outros e decidiu que não tinha porque se ver em espelhos. Quando, por acaso, via seu reflexo em panelas ou o rosto refletido na água, era por menos de um segundo e ele nunca focava o olhar. Não ligava quando estava de óculos, mas, sem eles, evitava encarar a aparência que, sem saber, mudara ao longo do tempo.

Foram dois anos difíceis para a família de Pedro. Afinal, o filho os havia abandonado, fugido pela opressão que sofria todos os dias no colégio, opressão que os pais foram incapazes de perceber o quanto era nociva. Agora, talvez seu filho estivesse morto, ou entregue a uma vida degradante, era impossível saber. Eles processaram a escola, mas isso não lhes trouxe paz de espírito. Nem compaixão a seus detratores, que o consideravam um fraco, uma maçã podre que não merecia estar entre eles. O passar do tempo não mudava seus corações.

Um dia Pedro foi avistado, mas quase não reconhecido. No entanto, a família sabia e sentia que era ele e o trouxe de volta. Amedrontado, inseguro pelo passado ainda tão recente, Pedro voltou para casa e, com permissão especial, entrou para a série em que estaria, não tivesse fugido. Suas notas foram excelentes nos testes de colocação e ele permaneceu o gênio que sempre fora.

Chegou o dia da volta para a escola, o momento de encarar a verdade. Pedro, cabisbaixo, ainda com medo, atravessou o portão e subiu as escadas, já prevendo os gritos e risos de humilhação. Não poderia estar mais enganado.

Quando o viram, todos ficaram boquiabertos. Seu corpo, antes quase esquálido, desenvolveu músculos que se desenhavam sob sua pele. A pele, graças ao sol diário, perdeu a quase mórbida palidez e ficou corada e sem espinhas ou cravos, por conta de uma alimentação saudável e o mais natural possível. Os dentes se ajeitaram com o tempo e a única coisa que não podia ser corrigida eram os olhos, mas as pessoas concordavam que eles lhe davam algum charme. Pedrinho Feio não existia mais. Pedrão era um rapaz bonito, a quem as garotas agora desejavam e de quem todos queriam ser amigos. Aquela menina que o havia humilhado agora o olhava com interesse e, sem saber dizer não, Pedrão aceitou ser seu namorado.

Perturbado por tudo aquilo, Pedro foi em direção ao banheiro e se olhou pela primeira vez depois de tanto tempo. Estava diferente, verdade. No entanto, ainda se sentia o mesmo por dentro, a ferida não tinha cicatrizado e o rosto bonito à sua frente não o fazia se sentir melhor. Faltava algo.

Na hora do intervalo, Pedro ouviu risos de deboche e, ato reflexo, achou que era consigo. Uma rápida olhada ao redor o fez ver que estava enganado: não era ele o alvo das críticas, mas uma garota que estava a algumas cadeiras de distância na cantina da escola. Um grupo de garotos e garotas cercava uma menina e lhe dizia coisas horríveis. Falavam de como seu cabelo não tinha a cor e o formato correto, de como seu peso não era o ideal, de como seu tom de pelo fugia do padrão. Era tudo verdade, a menina não se encaixava nos padrões de beleza artificialmente construídos naquele pequeno universo. Não usava maquiagem e suas roupas eram diferentes, não condiziam com aquele lugar.

Pedro entrou em pânico, ali, cercado por seus novos fãs e amigos. O que ele deveria fazer? Deveria se intrometer e fazer algum discurso que os envergonhasse? Deveria proteger aquela menina de se ferir tanto quando ele fora ferido? Pedro não conseguia se mexer, a dor no coração voltava e ele se via naquela menina, sofrendo o que sofrera no passado, mas através dela. Ele queria interferir, mas não conseguia. A verdade é que nem precisava.

Pedro saiu de sua imobilidade quando a garota nova respondeu à altura. Ela não se calou diante das injustiças e sua língua sarcástica combatia ferozmente os deboches e escárnios, os devolvendo com a mesma força com que os recebia. Ela era ainda mais capaz do que seus inimigos de chocar com suas palavras e, ao final da discussão, meninas choravam e corriam para o banheiro com a maquiagem borrada e rapazes seguravam uns aos outros para não a agredirem fisicamente. Ela vencera a discussão de forma simples, mostrando que os que a criticavam tinham inúmeros motivos para serem eles mesmos alvos de crítica.

Duas coisas aconteceram a Pedro quando viu tudo o que havia acontecido. Primeiro, ele reparou que aquela menina era igual a ele, mas diferente no que importava: ele tinha a coragem que ele nunca tivera. Ela soube reagir e não se pôs no lugar de vítima, ela encarava aquele que a queriam prejudicar olhando em seus olhos, sem abaixar a cabeça para suas opiniões grosseiras e tentativas de prejudicá-la. Em seguida, Pedro se deu conta de outra coisa: aquela menina era linda. Ela não seguia os padrões pré-moldados das meninas da escola. Não se incomodava em ser popular e seu corpo não atendia a todos os requisitos e parâmetros necessários para ser aceita. E ela não ligava para isso, não dava a mínima. Aquela menina era autossuficiente o bastante para não se sentir desgraçada por isso. Ela era especial e sabia disso. Pedro se apaixonou por ela na hora e, rompendo um compromisso que mal havia começado, largou sua recém-namorada e foi falar com aquela menina, juntando a coragem que sabia precisar ter.

A garota, é claro, o olhou como se fosse maluco. O que ele, que seguia os padrões – mesmo que apenas por acidente – estava querendo ao conversar com ela? Seria mais um a tentar humilhá-la? Queria ele tentar ganhar seu coração apenas para debochar dela quando conseguisse que ela se apaixonasse? Pedro penou, mas consegui provar que aquilo não era verdade. Aquele era seu primeiro dia no colégio depois de uma fuga de dois anos. Apesar da dificuldade, ele pôde mostrar como era sua verdadeira história. O fato é que, apesar do exterior durão, aquela menina também tinha uma enorme ferida em seu coração. Tinha se tornado casca-grossa para protegê-la, para impedir que o ferimento sangrasse e lhe trouxesse problemas. Não queria ser vulnerável àqueles que a desejavam o mal. Pedro entendia, mais que isso, ele compreendia.


Após uma longa conversa, Pedro e a garota, cujo nome era Paula e a quem haviam tentado dar o mesmo apelido carinhoso que a ele – Paulinha Feia – o que, claro, não tinha funcionado, resolveram que gostavam um do outro. Paula percebia a vulnerabilidade de Pedro e via que, se sua aparência externa era bela ou não, não importava. Pedro sentia o mesmo, ainda que ela fosse bela para ele, seu interior era o mais importante. E a beleza interior daquela menina, ele percebia, era enorme. Ao se dar conta disso, Pedro percebeu outra coisa: ainda não estava totalmente sarada, mas tinha começado a cicatrizar. A ferida em seu coração diminuía de tamanho, graças a Paula. Ele esperava agora ser capaz de melhorar a que havia no coração dela.

domingo, 15 de setembro de 2013

Lembranças Vindouras

Lembranças Vindouras

Bruno Leandro


Ah! Com que saudade e nostalgia me lembro dos tempos que ainda virão!
Com que felicidade recordo as alegrias vindouras e me faz cair uma pequena lágrima dos olhos por ainda não tê-las.
Ah! Com que tristeza me lembro do futuro vão, da forma esquecida e de tudo o que deixarei de lado!
Com que medo penso nas atitudes más que ainda terei.
Ah! Com que curiosidade vislumbro as possibilidades do porvir e as novidades do advir!
Com que interesse vasculho as memórias dos tempos adiante, apenas para rever aquilo que verei.

Ah! Está ali, a poucos passos, mas a cada segundo me escapa entre os dedos, já que o futuro está sempre adiante, longe. De meu toque, distante.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O Temível Exército Vermelho

O Temível Exército Vermelho

Bruno Leandro


O gigantesco exército vermelho se aproximava rapidamente. Os companheiros suavam frio e temiam por suas vidas, pois não tinham como se defender e a morte estava cada vez mais próxima.

Quando estavam a pouco mais de duzentos metros de distância, os cavalos pararam e um homem, que parecia ser o líder surgiu à frente, gritando para os que estavam no forte:

– Rendam-se, Alabartes! Ousem resistir a nós e destruiremos até a última pedra de sua fundação!

Os companheiros se entreolharam. Havia algo errado!

Timenes, o menos covarde, colocou a cabeça para fora da amurada e gritou em resposta:

– Alabartes? Mas não tem nenhum Alabartes aqui!

– Como não? – reclamou o homem – Aqui não é o castelo de Tarrin?

– Não!

Desconcertado, o homem olhou para seus companheiros, pedindo um mapa.

– Minha nossa, é verdade! Desculpa, aí, gente! Nós fizemos uma curva errada no Rio Trieste e viemos parar aqui por engano, foi mal!

Sem dizer mais nada, e bastante constrangidos, os homens do exército vermelho deram meia-volta e voltaram de onde vieram.

Timenes olhou pros companheiros e soltou um suspiro:

– Ufa! Ainda bem que era o exército vermelho! Se fosse o laranja, estávamos ferrados!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Além do Espelho (re-postagem)

Então, galera, como tem gente que tem coragem de ler um texto grande ( o/ ) de uma vez só, resolvi colocar o texto publicado durante a semana passada todo hoje. Acho que fica melhor para ler (minha opinião pessoal).
Espero que aprovem a iniciativa.

PS: Estou aproveitando este momento de relativa calmaria para atualizar o blog com mais frequência. Só não digo que voltei de vez porque, infelizmente, ainda tenho um semestre conturbado da faculdade para cursar. É o último (torçam  por mim) do meu bacharelado. Quanto à licenciatura, estudo na UERJ e eles gostam de dificultar a vida dos estudantes (a universidade como instituição, não os professores em sua maioria) e eu estudo na faculdade e em um curso (aliás, também é o último período do curso), trabalho, faço academia e dieta (estou acima do peso, sim, me condenem, rs). Como podem ver, assim como todo brasileiro, a minha nada mole vida não é *fàssio* fácil. Espero que me perdoem com todo o amor que guardam no fundo de seus corações.

Além do Espelho
Bruno Leandro


Começou há poucos dias e eu ainda não entendi o que está acontecendo. Desde que Ana chegou à minha casa, sinto uma aura diferente no ar. Acho que ela trouxe os espíritos de seus ancestrais consigo. Porém, se de fato é isso, como não consigo notá-los? Eu, o maior vidente de todo o mundo, sem conseguir perceber a presença de algum espírito? Isso está errado, muito errado. Sei que Ana é uma bruxa poderosa, mas nem ela deveria conseguir escondê-los de mim. Preciso descobrir seus planos, antes que ela destrua a todos que vivem nesta casa. Se pelo menos eu pudesse avisá-los!

Frustrado, fechei meu diário, selando-o com uma poderosa magia feita com meu sangue. Não apenas meus pensamentos, mas muitos segredos da família Hearthgrave estavam escondidos em seu interior. Se qualquer um de nossos encantamentos mais poderosos caísse em mãos erradas, a ira que Rasputin despejara sobre a cratera que um dia se chamou Rússia não seria nada comparada ao Armagedom que se abateria sobre a Terra. Se eu pudesse queimar tal diário, já o teria feito. Infelizmente, sua destruição liberaria maldições terríveis, de igual ou pior efeito. Estar entre a cruz e a espada tem um aspecto bem real quando se vive em uma família como a minha. Não, não havia jeito. Eu mesmo teria que resolver o assunto com Ana, nem que eu precisasse morrer para impedi-la de completar seus intentos malignos.

Saí do compartimento secreto sob a lareira da biblioteca e chamei Dumas, meu fiel serviçal, que acompanhava minha família há três séculos e meio. Nem mesmo sua morte o havia impedido de continuar a nosso lado e, graças a tal empenho, seu corpo ectoplásmico ainda habitava o plano dos viventes, mesmo que ele já não tivesse assuntos inacabados. Rápido como era de sua natureza, Dumas surgiu e, após ouvir minhas instruções e ser dispensado para outra ala do castelo, preparou-se para cumprir sua parte em meu plano. Claro que demoraria um pouco, já que nossa inimiga se passava por uma parente distante e, por isso, eu não poderia tentar desmascará-la na frente de toda a família, ou, com o perdão do trocadilho, o feitiço se voltaria contra o feiticeiro. Não, Ana e eu teríamos de estar sozinhos, ou meus planos não dariam certo.

Após ser deixado por Dumas, fui para meus aposentos e, tendo trocado minhas roupas de pesquisa por algo mais confortável e apropriado à ocasião, apresentei-me à sala de jantar, onde era esperado pela bruxa e por quatro de meus familiares: meu irmão e três irmãs. Nossos pais haviam se recolhido cedo, indispostos. Eu temia que isso já fosse parte das maquinações da bruxa, mas, de novo, eu não conseguia perceber seus espíritos se movimentando pela casa. Eu precisava descobrir como ela o fazia, pois era a única chance de salvar a todos.

Ana estava encantadora e conseguia esconder muito bem sua aura. Meus irmãos, ainda inexperientes nas artes, eram incapazes de notar seus dons sombrios. Confesso que até mesmo eu, capaz como sou, tive alguma incerteza. Se já não a conhecesse de longa data, diria se tratar de uma humana comum. Mas, não. Ana era perigosa, muito perigosa.

O jantar transcorreu normalmente e nos tratamos de maneira bastante civilizada e até mesmo cordial. Por mais que eu sentisse vontade de estrangular aquela bruxa naquele exato momento, eu sabia que, se fosse de sua vontade, ela rasgaria a garganta de meus irmãos e beberia seu sangue em um de seus rituais profanos. Ela tinha motivos para seu comportamento e não seria eu a agir primeiro. A segurança de todos estava em primeiro lugar.

Logo em seguida ao jantar, minhas irmãs se retiraram para a sala de jogos e meu irmão, cansado pelo longo dia, recolheu-se a seu quarto um pouco mais cedo. Meu único alívio era que tanto um quanto outro cômodo era protegido e nenhum deles poderia ser molestado pelos asseclas de minha adversária.

Tendo sido deixados a sós, nos encaramos por alguns instantes, mas não lhe dei a satisfação de arrancar de mim as primeiras palavras. Cansada de jogar comigo, a bruxa inclinou-se como se me fosse contar um de seus sórdidos segredos e falou, a meio-tom:

“É uma satisfação vê-lo novamente, meu querido primo. Senti saudades de você durante o dia inteiro. Tem se esgueirado muito por aí ultimamente?”

Seu tom de voz debochado deu-me náuseas e tive que me conter para não agredi-la naquele momento. Em vez disso, o único que fiz foi responder-lhe:

“Estive ocupado com assuntos particulares. Como sabe, tem havido uma infestação de pragas neste castelo há cerca de poucos dias. Algo de que pretendo me livrar o quanto antes, é claro”.

“Meu bem, acho difícil que você consiga conter essa infestação, mas o desafio a tentar.” – disse ela, com os olhos brilhando perigosamente. Ao ver isso, apertei com força o amuleto que trazia entre as vestes, mas ela recuou logo e não houve confronto. Apesar disso, a tensão entre nós apenas aumentava. Ela sabia que eu era fraco o suficiente para não conseguir atacá-la. No entanto, se ela se atrevesse a se lançar sobre mim, meus feitiços de defesa a destruiriam em um instante.

Ficamos nos encarando por um longo tempo, um sem saber qual seria o próximo movimento do outro. Ficaríamos nisso por muito tempo, não fosse um grito ter vindo do andar superior.

Deixando Ana de lado, corri escadas acima, para encontrar meu irmão tentando reanimar nossos pais. Ambos estavam com palidez cadavérica e, frios, parecia que a vida os havia abandonado. Em seu nervosismo o garoto não conseguia despertá-los e, aos prantos, chorava sobre seus corpos. As meninas chegaram logo em seguida e, somando seu pânico ao dele, transformaram aquela situação em um caos completo. Tive que gritar com eles para que não me atrapalhassem e, após expulsá-los do quarto, senti os pulsos de meus pais. Estavam fracos, mas ainda existiam. Murmurei rapidamente as palavras de uma magia de recuperação, primeiro sobre meu pai, que estava mais fraco, depois sobre minha mãe, cujo peito subia com menos dificuldade. Consegui fazer com que ambos se reanimassem e, assim que os vi bem, permiti ao resto da família adentrar o quarto para abraçá-los e perguntar como se sentiam. Foi neste momento que percebi três coisas: primeiro, o quarto de meus pais estava sem a proteção que eles haviam lançado mais cedo. Segundo, havia uma estranha emanação partindo do espelho e, terceiro, Ana não havia nos seguido. Maldita! Ela tinha atacado meus pais e os usara como distração para seus intentos! Ela devia estar correndo livre pela casa naquele mesmo instante e, se eu estivesse certo, ela estaria atrás da única coisa que valia a pena: meu diário!

Apesar dessa certeza, não pude ir atrás da bruxa naquele momento, pois eu precisava confirmar uma única dúvida e, se eu estivesse certo, precisaria me preparar adequadamente.

Expulsei meus irmãos do quarto mais uma vez e ordenei que se recolhessem a seus próprios aposentos, ao que procederam, não sem antes protestarem. Contudo, nenhum deles ousou questionar minhas ordens e eu fiquei aliviado por isso. Suas proteções eram mais eficazes que a do quarto de meus pais, que não tinham tanto talento para a magia de defesa, apesar de serem exímios magos de ataque. Isso foi o que me deixou ainda mais curioso, pois, tendo tanto talento mágico, eles não deveriam ter sido pegos de surpresa. Para confirmar minhas suspeitas, eu perguntei aos dois o que havia acontecido. Minha mãe não soube me responder, mas meu pai conseguiu se lembrar. Ele disse que, antes de dormir, sentiu como se algo apertasse seu peito com força, fazendo com que desmaiasse. Ao ouvir isso, minha mãe se recordou de ter corrido para ele e, em seguida, teve a mesma sensação, assim como a de sufocamento, parecendo que alguém a tentava prender a respiração. O que eles falaram foi suficiente para me revelar a verdade, não só por suas palavras, mas pelo lugar onde os dois se achavam desmaiados.

Quando encontrei meu irmão tentando acudir meus pais, percebi que eles estavam próximos ao espelho. Não só isso, eu também senti uma energia espectral emanando da superfície de vidro, como se algo tivesse saído às pressas por aquele espelho. Meus pais não são videntes e não perceberam o que aconteceu, mas meu irmão é. Ele deveria ter sentido as emanações dos fantasmas que haviam atacado nossos pais, mas se distraiu ao vê-los caídos no chão e quase foi derrubado também. Se eu não tivesse chegado no momento em que cheguei, ele seria mais um desmaiado e quase sem vida, o que me fez perceber a verdadeira natureza do inimigo que Ana trazia à minha casa: seus ancestrais eram espectros, capazes de sugar a energia vital dos seres vivos. Espectros são mais sutis do que fantasmas e, por isso, sua energia é mais difícil de ser sentida. Pior ainda, se eu estivesse certo, Ana os estava enviando através de portais gerados em espelhos. Eles não estavam na casa, mas a bruxa podia trazê-los sempre que quisesse e era o que tinha feito.

Tomei estas conclusões enquanto corria, descendo escadaria abaixo, em direção ao hall de entrada e, de lá, para a biblioteca, onde a passagem para meu compartimento secreto estava escondida. Sabia o resultado que me aguardava, mas ative-me à esperança de ainda ter algum tempo. Contudo, foi inútil e a esperança foi vã. Ana conseguira, de alguma forma, quebrar minhas proteções e, graças a isso, já havia escapado com o diário.

Como fui estúpido! Se eu tivesse guardado o diário comigo, ela não teria a menor chance. Infelizmente, carregar tal fardo a todo lugar não é uma ideia muito boa e fui obrigado a deixá-lo para trás durante o jantar. Eu pretendia voltar logo em seguida, mas a distração dela se mostrou eficaz e acabei deixando os segredos de minha família desprotegidos. Só me restava persegui-la e tentar pará-la ainda dentro de minha propriedade, onde os danos poderiam ser controlados e onde ela não conseguiria quebrar os selos de proteção.

Eu não sabia quantos minutos ela teria de vantagem, mas cria não serem mais do que doze, o tempo que levei para correr até o andar superior e, após ajudar meus pais, para voltar a meus aposentos agora não tão secretos.

Furioso, catei alguns outros amuletos de minha escrivaninha e parti atrás da bruxa. Minha propriedade é um labirinto mágico e estranhos não podem sair dela sem auxílio. Exceto por um lugar: o jardim de inverno. Se eu estivesse certo, ela invocaria um portal para longe assim que chegasse a ele. Se eu não chegasse a tempo, ela ficaria fora de alcance e eu poderia dar meu diário como perdido.

Corri o máximo que pude para o jardim de inverno; porém, quando estava quase chegando, tive uma surpresa desagradável. Como tolo, caí em uma armadilha. Seis espectros barravam meu caminho. Surgidos de superfícies reflexivas, eles se interpunham entre mim e meu objetivo. Tentei atacá-los, mas minhas forças não se comparam a de meus pais. Sou muito fraco e, por conta disso, os monstros não foram sequer afetados pelos encantamentos que fiz. Maldito poder defensivo que não serve para nada! – pensei, enquanto os espectros, com um sorriso maligno no rosto, apenas ficavam parados, como se soubessem de minha fraqueza.

Ao longe, comecei a ouvir a invocação do portal. Ana estava se preparando para sumir. Eu teria, no máximo, três minutos antes que ela conseguisse partir. Tentei forçar passagem, mas nenhum deles se mexeu. A bruxa iria escapar.  Ou não, pois Dumas retornou naquele momento, cumprindo minhas ordens.

Meu fiel serviçal seguira minhas indicações à perfeição e trazia junto de si onze outros espíritos, todos de ancestrais de minha família. Eram mais fracos do que os espectros, mas a proporção de quase dois para um serviria para meus intentos.

Os fantasmas começaram a brigar entre si e não era algo bonito de se ver. Apesar de mortos, brigavam como seres vivos. Dois deles eram feiticeiros e soltavam magias cujos efeitos meu corpo quase podia sentir como se fossem reais. Outros eram cavaleiros e manipulavam suas espadas como se ainda estivessem novas e afiadas. Atacavam os espectros sem piedade e estes, por ainda terem alguma ligação com o mundo dos vivos, pareciam sangrar e gritavam quando atingidos. Ocasião rara, porém, já que seus poderosos golpes arremessavam meus familiares para longe. A única vantagem que os espíritos de meus antepassados tinham era sua resiliência, pois seus golpes não conseguiam fazer grande estrago. Felizmente, como já estavam mortos, não eram feridos e podiam continuar o ataque indefinidamente. Quando seus corpos eram estraçalhados, demorava um pouco, mas eles se reconstituíam. Se um braço era arrancado, ele flutuava de volta ao lugar e, se uma cabeça fosse destruída, se reconstruía logo em seguida.

Apesar de ter os detalhes vívidos na memória, não fiquei vendo aquela cena por muito tempo, já que o meu estava se esgotando. Ouvia Ana pronunciando a frase final e precisava me apressar. Fiz o melhor que pude e, me desviando da terrível batalha que se desenrolava à minha frente, encontrei uma brecha pela qual passei. Um dos espectros, incauto, reagiu e tentou me atacar com seu poder, esquecendo-se de minhas proteções. Seu corpo ectoplásmico foi destruído de imediato e sua alma foi sugada para o outro mundo. Respirei aliviado, vendo que meus amuletos faziam seu trabalho, e corri para o jardim de inverno, seguido de perto por Dumas.

Encontrei Ana de frente para um imenso espelho que havia ali. Ela fazia sua magia favorita e manifestava um portal mais forte, que seria capaz de transportar um vivente através do espaço. O portal estava quase pronto e bastaria ela atravessá-lo para nunca mais ser vista.

Corri para Ana e me interpus entre ela e o espelho. Senti sua indecisão, ela sabia que não poderia brigar comigo sem sofrer as consequências. Satisfeito, me permiti sorrir, já me preparando para pegar meu diário de volta. Porém, acabei sendo surpreendido, quando a bruxa resolveu fazer algo inédito: atacar-me com as mãos nuas! Ana veio para cima de mim com uma fúria tal, que só percebi quando era tarde demais. Ela enfiou as unhas no meu rosto com tanta força que eu urrei de dor! Em seguida, juntando forças que eu não sabia que ela dispunha, socou meu rosto de tal maneira, que fiquei desnorteado. Foi o suficiente. Ela passou por mim e atravessou o espelho. De maneira instintiva, agarrei-me a ela. O portal começou a fechar, mas eu estava dentro. Fui puxado com ela e fomos lançados em alguma dimensão intermediária. Pelo olhar em seu rosto, percebi que ela ficou confusa. O portal não tinha sido feito para carregar várias pessoas e minha intrusão nos tinha lançado em um lugar imprevisto.  Ela me olhou com ódio e me agrediu novamente, chutando minha cabeça com força. Tonto, não tive como reagir e soltei seu pé, rolando para longe.

Aquela dimensão era escura, e a única fonte de iluminação era a saída do portal, alguns metros adiante. Estávamos em um lugar vazio, com versões fantasmagóricas e distorcidas de nosso mundo, mas sem substância. Aquele era o mundo além do espelho, onde eu me perderia eternamente se fosse abandonado ali. Percebendo isso, persegui Ana, que corria com meu diário em suas mãos. Eu sentia meu rosto arder e o sangue pingar onde ela me ferira. A visão estava borrada e meus passos mais lentos. Tive medo de não conseguir chegar a ela a tempo, sempre o maldito tempo!

Corri como um desesperado, mas, quando me faltavam apenas vinte metros, ela chegou a seu destino. A bruxa conseguiu chegar até o portal e, sem ter o que a impedisse, preparou-se para voltar ao mundo real. Eu estava perdido. Ainda assim, corri, apenas para vê-la colocar um pé para fora daquele mundo. Ou assim Ana e eu pensávamos, não fosse por Dumas.

Meu fiel Dumas surgiu das sombras, segurando Ana e a puxando para dentro daquele mundo novamente. Ele havia nos seguido pelo portal e, por alguma estranha mágica daquele lugar, havia ficado sólido. Ele conseguiu conter a bruxa pelos segundos que eu precisava para chegar perto dela. De costas para mim, ela se debateu e, sem saber que eu me aproximava, disparou uma magia contra Dumas. Cheguei no momento exato em que isso aconteceu e, graças a meus amuletos, a onda de choque se voltou contra ela. Derrubada por sua própria magia, a bruxa não era mais um perigo imediato. Vasculhei suas vestes e encontrei o que procurava: meu diário, ainda lacrado e com meus segredos contidos em seu interior. A capa estava manchada de sangue, mas não achei que isso tivesse danificado seu conteúdo.

Dumas e eu atravessamos para o outro lado. Deixei Ana dentro daquela estranha dimensão e, para garantir que ela não pudesse sair, quebrei o espelho assim que passei por ele. Encontrei os espectros ainda em batalha contra meus antepassados, mas, com ajuda de meus amuletos, conseguimos derrotá-los. Não foi fácil, mas foi feito.

Voltei para o castelo e, após verificar se todos estavam bem, retornei para meu quarto secreto. Tudo estava certo e, para registrar o que havia acontecido, abri o diário uma última vez naquele dia. Foi quando notei algo terrível. Uma de suas páginas fora arrancada! Mas, como? Como foi que Ana conseguira poder suficiente para abri-lo? Senti uma forte ardência no rosto e percebi o que tinha acontecido. Meu sangue!

Percebi que Ana havia feito tudo de propósito. A bruxa havia orquestrado tudo de forma a me fazer persegui-la. Ela queria que eu a seguisse, pois só assim poderia me atacar e usar meu sangue para abrir o diário. E eu, tolo, caí em sua armadilha.

As gargalhadas daquela mulher pareceram ecoar pelo castelo. Será que foi impressão minha? Isso é o que menos importa agora. Tenho um grande temor, pois não sei que página ela arrancou. Qualquer uma já seria desastrosa. No entanto, se ela sabia o que procurava, e nada me faz crer o contrário, precisamos nos preparar para o fim de uma era.