A música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, fala da vida difícil dos moradores do Nordeste. Apesar de muitos governos idos e vindos, ou talvez por eles, ela continua atual em uma parte de nosso país até hoje, por mais que seja difícil acreditar. Quando comecei o texto abaixo, a intenção era falar apenas de um velho homem que tocava acordeão e, por isso, mantive o título original. Porém, quando resolvi escrever que o homem tocava Asa Branca em seu acordeão, uma mudança ocorreu e a força da música me pegou em cheio, fazendo com que eu precisasse torná-la parte da minha curta história. A participação dessa música é, de certa forma, bem sutil, mas espero que apreciem a forma que ela acabou moldando para meu texto. Ao final deste post, coloquei a letra da música, para que possam apreciá-la como eu aprecio.
O Velho Tocador de
Acordeão
Bruno Leandro
Quando eu era pequeno, havia um velho senhor que tocava
acordeão em uma praça aqui no meu bairro. De semblante um pouco tristonho e um
olhar um pouco distante, ele chegava, sentava em um dos bancos e começava a
tocar músicas do nordeste do país. Eram músicas de vários tipos, alegres,
animadas, tristes, canções de saudade... não tinha um tipo de canção que ele
não pudesse tocar. Lembro-me de que uma de minhas favoritas era “Asa Branca”,
de Luiz Gonzaga. Uma música muito triste, de muita saudade e que retratava a
dura realidade que este país sofria e ainda sofre. Apesar de triste, a música
tem um tom de esperança, falando da possibilidade do retorno, da volta ao lar
quando a seca passar. Uma das melhores músicas que já ouvi.
Lembro que aquele senhor fazia daquilo uma rotina diária. Todos
os dias quando eu passava de mãos dadas com a minha mãe indo para a escola,
aquele senhor estava sentado em um banco da praça com seu instrumento em mãos
tirando aquelas notas doces e tristes ao mesmo tempo, falando da saudade de sua
terra de uma maneira que tocava o coração de todos. Os animais ficavam perto
dele, como se entendessem seus coração. As pessoas passavam e ouviam os sons
tirados daquela caixinha de ar mágica e seus dias mudavam, ficando um pouco
mais saudosos, verdade, mas muito mais felizes. Eu era uma daquelas pessoas, um
pequeno garoto que não sabia nada da vida, mas que me sentia envolvido pelo
toque poderoso das canções daquele senhor.
Minha mãe e eu, assim como outras pessoas, conversávamos às
vezes com aquele senhor. Eu nunca soube o nome dele, mas conheci um pouco de
sua história. Retirante, havia vindo para o Rio de Janeiro já adulto na boleia
de um caminhão pau-de-arara, deixando sua família para trás, pensando em
conseguir dinheiro o suficiente para trazê-los depois. A vida não foi fácil,
mas ele conseguiu seu intento, trazendo esposa e crianças depois de algum
tempo. Porém, quando eles aqui chegaram, ele teve uma surpresa desagradável:
corte de pessoal em seu trabalho. Com isso, o dinheiro do aluguel e de seu
próprio sustento ficou ameaçado e, mesmo com a ajuda de sua esposa, não
conseguiram se manter a contento. Por conta disso, a mulher e os filhos tiveram
que voltar para o sertão nordestino, para morar com os pais dela e, assim,
tentar sobreviver mais um tempo. Ele ficou, na esperança de fazer sua vida dar
certo. Muito tempo se passou, os meses se tornaram anos e aquele senhor não
conseguiu mais retornar nem trazer a família uma segunda vez. Ele deixou de
participar de suas vidas e perdeu a transformações dos filhos em homens e de
sua esposa em uma senhora mais velha e frágil, assim como havia acontecido com ele
próprio. Sua história era triste, mas apenas mais umas das muitas vividas por
retirantes em todo o país. Era por isso que aquele senhor tocava aquelas
músicas tão tristes, para se lembrar de sua história e, de alguma forma,
continuar acreditando que era possível retornar ao lar.
Um dia, eu estava seguindo meu caminho normalmente quando,
ao passar pela praça, percebi que o velho senhor não estava em seu lugar
costumeiro. Na verdade, não estava em lugar nenhum. Eu não conseguia ouvir sua
música e percebi que todos tinham a mesma curiosidade que eu. Onde teria ele
ido? Por que não estava ali, como sempre? Eu tinha me acostumado tanto àquela
figura solitária tocando os corações e mentes das pessoas e dos animais, que já
o considerava parte do cenário. E, pelo visto, eu não era o único. Quando perguntei
à minha mãe sobre aquele homem, ela me disse que não sabia, também demonstrando
preocupação. Apesar disso, seguimos em frente, assim eu não me atrasaria para minhas
aulas. De qualquer forma, pensei eu, aquilo deveria ser apenas uma ocorrência
inusitada. Logo aquele senhor estaria novamente na praça, tocando e encantando
a mim e a todos. Porém, isso não aconteceu.
Aquele senhor não retornou à praça nos dias que se passaram.
Os dias logo ficaram mais longos e, aos poucos, viraram semanas. As outras
pessoas, que se adaptavam rápido às mudanças, logo se esqueceram daquele senhor.
Eu, talvez pela minha pouca idade e por não estar acostumado a sair de minha
rotina, demorei muito tempo para esquecê-lo. E, ainda assim, não consegui. Vivia
perguntando à minha mãe sobre ele. Se, no início, ela aguentava com paciência
minhas perguntas, logo ficou irritada com os constantes questionamentos e disse
que ele devia ter ficado doente, que talvez tivesse morrido e que, por isso,
não tivesse mais retornado. Morte ainda era um conceito estranho para mim,
então foi difícil aceitar que aquele homem nunca mais faria parte da vida das
pessoas que passavam por aquela praça. Fiquei muito triste, por muito tempo.
Passou-se mais algum tempo e, um dia, vi alguém muito
parecido com aquele senhor sentado no mesmo banco da praça em que ele costumava
se sentar, segurando o mesmo acordeão que ele costumava tocar. Tomei um susto
com a semelhança, não acreditando em meus olhos. Soltando-me da mão de minha
mãe, corri na direção do homem, pensando sabe-se lá o que, e fazendo um milhão
de perguntas para ele, por que era tão parecido com aquele senhor, o que estava
fazendo ali, por que ele não tinha dado notícias e onde ele estava, o que tinha
acontecido com ele. O homem, paciente, esperou que eu retomasse meu fôlego para
poder falar. Minha mãe, que a esta altura já havia me alcançado e dado uma
bronca, pediu desculpas ao homem e já pensava em me arrastar, quando ele falou
conosco.
Aquele homem explicou que era filho do velho senhor que
tocava todos os dias naquela praça e que, por isso, eram tão parecidos. Eu tomei
um susto quando ouvi isso, pois não tinha pensado que os filhos daquele senhor
já fossem adultos, apesar de isso ser meio óbvio, mas não interrompi sua
narrativa. Ele continuou falando e disse que seu pai se comunicava com eles por
carta todas as semanas e uma vez por mês por telefone, pois as tarifas eram
caras. Era uma rotina, que nunca falhava, até poucas semanas antes, quando as
cartas deixaram de chegar e o aguardado telefonema não foi dado. Aquela não era
uma família de posses, sua pobreza ainda era grande, mas, desesperados,
juntaram o dinheiro que não tinham e mandaram o filho mais velho para a minha cidade,
para procurar seu pai. Ele veio em um caminhão de pau-de-arara, da mesma forma
que seu velho pai o havia trazido na primeira vez.
Aqui chegando, o filho não demorou a encontrar o pai, que
estava muito doente, motivo pelo qual não conseguia mais escrever e, sequer,
ligar. Cuidado por vizinhos, sua saúde não estava nada boa. Porém, e você pode
chamar isso de milagre, divina providência ou o que achar melhor, ao ver seu
filho, já homem feito, ali na sua frente, o velho senhor pareceu recobrar a
força e a vontade de lutar, vencendo sua doença.
Achei a história muito bonita, mas nada daquilo explicava o
porquê daquele homem estar sentado naquele banco, no lugar de sue pai. Eu já ia
perguntar isso, quando ele apareceu. Saindo de um dos quiosques da praça,
aquele velho senhor caminhou vagarosamente na direção de seu filho e, ajudado
por este, sentou-se novamente no banco que eu considerava seu por direito. Tinha
um brilho especial nos olhos e seu semblante, antes algo triste, agora tinha uma
leveza e uma alegria incontestáveis. Falando
comigo, me contou um segredo: estava voltando para sua terra! Seu filho, ao
vê-lo aqui no Rio e percebendo que o pai não tinha mais condições de viver
sozinho, já havia arranjado tudo e, trabalhando em alguns pequenos bicos aqui e
ali, havia conseguido o dinheiro que pagaria as passagens de ônibus para os
dois. Demorariam menos tempo e sua volta seria mais confortável para o senhor
de saúde frágil.
Saí daquele lugar quase atrasado com minha mãe, que sorria
secretamente com aquela bonita história. Enquanto prosseguíamos em nosso
caminho, o senhor tomou de seu acordeão uma última vez e tocou novamente a
música de que mais gostávamos: Asa Branca. Mesmo pequeno, fiquei pensando em
como agora aquela música teria um significado diferente: não seria mais a
história de um homem que, expulso pela seca de sua terra, havia se separado dos
entes queridos e arriscado nunca mais vê-los. Aquela música não seria mais uma
crônica de saudade ou de esperança. Agora, aquela canção teria um novo
significado para o senhor e sua família, ela traria a mensagem do retorno, do
fim do sofrimento (mesmo que não do fim da seca) do fim da tristeza e do começo
de uma nova vida para todos aqueles que faziam parte da vida daquele homem.
Nunca mais ouvi falar daquele senhor ou de sua família, mas
acredito, do fundo do meu coração, que ele tenha voltado com seu filho para a
sua terra e que, mesmo diante das adversidades naturais do sertão, eles tenham
sido felizes por estarem juntos. Por muito tempo, ao passar por aquela praça,
meu peito doía de saudade daquele velho senhor, mas esse sentimento era logo
substituído pela alegria de pensar que, talvez, e só talvez, aquele homem
estivesse naquele mesmo momento a vários quilômetros de distância dali, em
outra cidade, em outro bairro, em outra praça, sentando em um bando diferente,
mas com o mesmo acordeão, tocando várias músicas de seu já conhecido
repertório, a principal delas sendo Asa Branca, agora como uma música não de
tristeza, mas de felicidade.
E agora, a letra da música:
Asa Branca
Luíz Gonzaga
Composição: Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira
Quando oiei a terra ardendo
Qual a fogueira de São João
Eu preguntei a Deus do céu,ai
Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de prantação
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
"Intonce" eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
Hoje longe muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortar pro meu sertão
Quando o verde dos teus óios
Se espalhar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei, viu
Meu coração
Resolvi deixar a letra no original, com os "erros de português", pois foi assim que ela foi composta e é assim que tem de ser lida e ouvida.
Bem, este foi meu post da semana. Espero que tenham gostado. Até a semana que vem!