quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Asa Branca

A música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, fala da vida difícil dos moradores do Nordeste. Apesar de muitos governos idos e vindos, ou talvez por eles, ela continua atual em uma parte de nosso país até hoje, por mais que seja difícil acreditar. Quando comecei o texto abaixo, a intenção era falar apenas de um velho homem que tocava acordeão e, por isso, mantive o título original. Porém, quando resolvi escrever que o homem tocava Asa Branca em seu acordeão, uma mudança ocorreu e a força da música me pegou em cheio, fazendo com que eu precisasse torná-la parte da minha curta história. A participação dessa música é, de certa forma, bem sutil, mas espero que apreciem a forma que ela acabou moldando para meu texto. Ao final deste post, coloquei a letra da música, para que possam apreciá-la como eu aprecio.

O Velho Tocador de Acordeão
Bruno Leandro

       Quando eu era pequeno, havia um velho senhor que tocava acordeão em uma praça aqui no meu bairro. De semblante um pouco tristonho e um olhar um pouco distante, ele chegava, sentava em um dos bancos e começava a tocar músicas do nordeste do país. Eram músicas de vários tipos, alegres, animadas, tristes, canções de saudade... não tinha um tipo de canção que ele não pudesse tocar. Lembro-me de que uma de minhas favoritas era “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga. Uma música muito triste, de muita saudade e que retratava a dura realidade que este país sofria e ainda sofre. Apesar de triste, a música tem um tom de esperança, falando da possibilidade do retorno, da volta ao lar quando a seca passar. Uma das melhores músicas que já ouvi.

          Lembro que aquele senhor fazia daquilo uma rotina diária. Todos os dias quando eu passava de mãos dadas com a minha mãe indo para a escola, aquele senhor estava sentado em um banco da praça com seu instrumento em mãos tirando aquelas notas doces e tristes ao mesmo tempo, falando da saudade de sua terra de uma maneira que tocava o coração de todos. Os animais ficavam perto dele, como se entendessem seus coração. As pessoas passavam e ouviam os sons tirados daquela caixinha de ar mágica e seus dias mudavam, ficando um pouco mais saudosos, verdade, mas muito mais felizes. Eu era uma daquelas pessoas, um pequeno garoto que não sabia nada da vida, mas que me sentia envolvido pelo toque poderoso das canções daquele senhor.

          Minha mãe e eu, assim como outras pessoas, conversávamos às vezes com aquele senhor. Eu nunca soube o nome dele, mas conheci um pouco de sua história. Retirante, havia vindo para o Rio de Janeiro já adulto na boleia de um caminhão pau-de-arara, deixando sua família para trás, pensando em conseguir dinheiro o suficiente para trazê-los depois. A vida não foi fácil, mas ele conseguiu seu intento, trazendo esposa e crianças depois de algum tempo. Porém, quando eles aqui chegaram, ele teve uma surpresa desagradável: corte de pessoal em seu trabalho. Com isso, o dinheiro do aluguel e de seu próprio sustento ficou ameaçado e, mesmo com a ajuda de sua esposa, não conseguiram se manter a contento. Por conta disso, a mulher e os filhos tiveram que voltar para o sertão nordestino, para morar com os pais dela e, assim, tentar sobreviver mais um tempo. Ele ficou, na esperança de fazer sua vida dar certo. Muito tempo se passou, os meses se tornaram anos e aquele senhor não conseguiu mais retornar nem trazer a família uma segunda vez. Ele deixou de participar de suas vidas e perdeu a transformações dos filhos em homens e de sua esposa em uma senhora mais velha e frágil, assim como havia acontecido com ele próprio. Sua história era triste, mas apenas mais umas das muitas vividas por retirantes em todo o país. Era por isso que aquele senhor tocava aquelas músicas tão tristes, para se lembrar de sua história e, de alguma forma, continuar acreditando que era possível retornar ao lar.

          Um dia, eu estava seguindo meu caminho normalmente quando, ao passar pela praça, percebi que o velho senhor não estava em seu lugar costumeiro. Na verdade, não estava em lugar nenhum. Eu não conseguia ouvir sua música e percebi que todos tinham a mesma curiosidade que eu. Onde teria ele ido? Por que não estava ali, como sempre? Eu tinha me acostumado tanto àquela figura solitária tocando os corações e mentes das pessoas e dos animais, que já o considerava parte do cenário. E, pelo visto, eu não era o único. Quando perguntei à minha mãe sobre aquele homem, ela me disse que não sabia, também demonstrando preocupação. Apesar disso, seguimos em frente, assim eu não me atrasaria para minhas aulas. De qualquer forma, pensei eu, aquilo deveria ser apenas uma ocorrência inusitada. Logo aquele senhor estaria novamente na praça, tocando e encantando a mim e a todos. Porém, isso não aconteceu.

          Aquele senhor não retornou à praça nos dias que se passaram. Os dias logo ficaram mais longos e, aos poucos, viraram semanas. As outras pessoas, que se adaptavam rápido às mudanças, logo se esqueceram daquele senhor. Eu, talvez pela minha pouca idade e por não estar acostumado a sair de minha rotina, demorei muito tempo para esquecê-lo. E, ainda assim, não consegui. Vivia perguntando à minha mãe sobre ele. Se, no início, ela aguentava com paciência minhas perguntas, logo ficou irritada com os constantes questionamentos e disse que ele devia ter ficado doente, que talvez tivesse morrido e que, por isso, não tivesse mais retornado. Morte ainda era um conceito estranho para mim, então foi difícil aceitar que aquele homem nunca mais faria parte da vida das pessoas que passavam por aquela praça. Fiquei muito triste, por muito tempo.

          Passou-se mais algum tempo e, um dia, vi alguém muito parecido com aquele senhor sentado no mesmo banco da praça em que ele costumava se sentar, segurando o mesmo acordeão que ele costumava tocar. Tomei um susto com a semelhança, não acreditando em meus olhos. Soltando-me da mão de minha mãe, corri na direção do homem, pensando sabe-se lá o que, e fazendo um milhão de perguntas para ele, por que era tão parecido com aquele senhor, o que estava fazendo ali, por que ele não tinha dado notícias e onde ele estava, o que tinha acontecido com ele. O homem, paciente, esperou que eu retomasse meu fôlego para poder falar. Minha mãe, que a esta altura já havia me alcançado e dado uma bronca, pediu desculpas ao homem e já pensava em me arrastar, quando ele falou conosco.

          Aquele homem explicou que era filho do velho senhor que tocava todos os dias naquela praça e que, por isso, eram tão parecidos. Eu tomei um susto quando ouvi isso, pois não tinha pensado que os filhos daquele senhor já fossem adultos, apesar de isso ser meio óbvio, mas não interrompi sua narrativa. Ele continuou falando e disse que seu pai se comunicava com eles por carta todas as semanas e uma vez por mês por telefone, pois as tarifas eram caras. Era uma rotina, que nunca falhava, até poucas semanas antes, quando as cartas deixaram de chegar e o aguardado telefonema não foi dado. Aquela não era uma família de posses, sua pobreza ainda era grande, mas, desesperados, juntaram o dinheiro que não tinham e mandaram o filho mais velho para a minha cidade, para procurar seu pai. Ele veio em um caminhão de pau-de-arara, da mesma forma que seu velho pai o havia trazido na primeira vez.

          Aqui chegando, o filho não demorou a encontrar o pai, que estava muito doente, motivo pelo qual não conseguia mais escrever e, sequer, ligar. Cuidado por vizinhos, sua saúde não estava nada boa. Porém, e você pode chamar isso de milagre, divina providência ou o que achar melhor, ao ver seu filho, já homem feito, ali na sua frente, o velho senhor pareceu recobrar a força e a vontade de lutar, vencendo sua doença.
Achei a história muito bonita, mas nada daquilo explicava o porquê daquele homem estar sentado naquele banco, no lugar de sue pai. Eu já ia perguntar isso, quando ele apareceu. Saindo de um dos quiosques da praça, aquele velho senhor caminhou vagarosamente na direção de seu filho e, ajudado por este, sentou-se novamente no banco que eu considerava seu por direito. Tinha um brilho especial nos olhos e seu semblante, antes algo triste, agora tinha uma leveza e uma alegria incontestáveis.  Falando comigo, me contou um segredo: estava voltando para sua terra! Seu filho, ao vê-lo aqui no Rio e percebendo que o pai não tinha mais condições de viver sozinho, já havia arranjado tudo e, trabalhando em alguns pequenos bicos aqui e ali, havia conseguido o dinheiro que pagaria as passagens de ônibus para os dois. Demorariam menos tempo e sua volta seria mais confortável para o senhor de saúde frágil.

          Saí daquele lugar quase atrasado com minha mãe, que sorria secretamente com aquela bonita história. Enquanto prosseguíamos em nosso caminho, o senhor tomou de seu acordeão uma última vez e tocou novamente a música de que mais gostávamos: Asa Branca. Mesmo pequeno, fiquei pensando em como agora aquela música teria um significado diferente: não seria mais a história de um homem que, expulso pela seca de sua terra, havia se separado dos entes queridos e arriscado nunca mais vê-los. Aquela música não seria mais uma crônica de saudade ou de esperança. Agora, aquela canção teria um novo significado para o senhor e sua família, ela traria a mensagem do retorno, do fim do sofrimento (mesmo que não do fim da seca) do fim da tristeza e do começo de uma nova vida para todos aqueles que faziam parte da vida daquele homem.

          Nunca mais ouvi falar daquele senhor ou de sua família, mas acredito, do fundo do meu coração, que ele tenha voltado com seu filho para a sua terra e que, mesmo diante das adversidades naturais do sertão, eles tenham sido felizes por estarem juntos. Por muito tempo, ao passar por aquela praça, meu peito doía de saudade daquele velho senhor, mas esse sentimento era logo substituído pela alegria de pensar que, talvez, e só talvez, aquele homem estivesse naquele mesmo momento a vários quilômetros de distância dali, em outra cidade, em outro bairro, em outra praça, sentando em um bando diferente, mas com o mesmo acordeão, tocando várias músicas de seu já conhecido repertório, a principal delas sendo Asa Branca, agora como uma música não de tristeza, mas de felicidade.

E agora, a letra da música:

Asa Branca

Luíz Gonzaga

Composição: Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira

Quando oiei a terra ardendo
Qual a fogueira de São João
Eu preguntei a Deus do céu,ai
Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de prantação
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
"Intonce" eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
Hoje longe muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortar pro meu sertão
Quando o verde dos teus óios
Se espalhar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei, viu
Meu coração

Resolvi deixar a letra no original, com os "erros de português", pois foi assim que ela foi composta e é assim que tem de ser lida e ouvida.

Bem, este foi meu post da semana. Espero que tenham gostado. Até a semana que vem!

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