A
Taça
Bruno Leandro
Havia uma taça.
Havia uma taça que era a mais bonita de todas. Dourada,
cravejada de pedras preciosas e com inscrições em prata, tal taça era
considerada especial. Uns diziam que era sagrada, posto que ouro é um metal
divino. Outros, que era demoníaca, já que o excesso de riquezas não levaria ao
céu, mas ao inferno. Uma pequena divergência de opiniões foi suficiente para
separá-los.
O povo escolhido, como eles se definiam, dizia que
aquela taça era sagrada e que tinha sido enviada dos céus por um anjo divino
para que os homens tivessem amor, paz e boa-vontade uns para com os outros. Diziam
que aqueles que não acreditavam no poder da taça eram hereges e que eles não
mereceriam o reino dos céus, já que se rebelavam contra o nome e a vontade de
Deus, residida naquela taça.
O povo do senhor, o grupo que se opunha ao primeiro,
pregava que riquezas materiais não levam ao céu e que aquela taça era uma
dissimulação enviada pelo demônio para tentar a todos. A taça era um joguete
demoníaco e sua existência era uma prova do mal. Nenhum bem viria da posse de
tal objeto maligno. Aqueles que tentassem se apossar da taça e dela se utilizar
deveriam ser punidos, pois eram imundos aos olhos de Deus e apenas queriam e
praticariam o mal aos homens de boa vontade.
Discórdias, discussões, bate-bocas e pequenas brigas
levaram a algo ainda maior. Os conflitos formaram dois lados e a guerra começou.
Houve sangue, suor, lágrimas e derrotas para ambos
os lados. O fanatismo daqueles que queriam proteger a taça era equivalente
exato ao dos que queriam destruí-la e nenhum dos lados queria dar o braço a torcer
para o outro. Houve mortes, torturas, assassinatos e a desvirtuação da glória
da Cruzada inicial. Houve estupros, houve a morte dos mais velhos e houve a
morte dos mais novos. Crianças, idosos e vulneráveis de quaisquer espécies,
nenhum deles era perdoado por existir. Bastava estarem vivos e serem do “povo
inimigo”, para que merecessem morrer. A ideia de paz foi se tornando cada vez
mais distante e logo deixou de existir como se nunca houvesse. Enquanto isso, a
taça permanecia em seu lugar, inalterada, intocada, imaculada.
Chegou um dia em que o massacre deu-se de forma
definitiva. Toda a carne foi estraçalhada, todos os ossos foram quebrados,
todos os corações foram destroçados. Não houve sobreviventes, os dois grupos se
exterminaram e o mundo, enfim, conheceu a paz.
Milênios se passaram, a trágica história da taça foi
esquecida e a mesma foi abandonada ao tempo, sem que ninguém sequer lembrasse
de sua existência. Até certo dia.
Um dia, um garoto correu pelo território proibido,
que ele não sabia que havia sido proibido e, mesmo que soubesse, não saberia
mais o porquê. Ele caminhou por áreas desertas, cheias de ruínas e onde, um
dia, homens haviam morrido por uma causa, melhor dizendo, por duas causas. Seus
ossos há muito haviam se esfarelado e reclamados pelo tempo, as armas,
enferrujadas, jaziam inofensivas longe do alcance da vista. Nada ali existia
que pudesse causa temor no coração daquela pobre criança.
O garoto, sem saber onde estava, se perdeu. Perdido,
teve sede e, depois de muito procurar, achou uma fonte de águas límpidas. Suas mãos,
pequenas, não permitiam que bebesse o quanto queria, apesar de suas tentativas.
Foi quando ele viu, a pouca distância, um objeto meio largado meio enterrado na
terra e na poeira das eras. Sem saber o que era, desenterrou o objeto e viu que
era uma taça. Aquela taça que causara a discórdia entre todas aquelas pessoas no
passado. Porém, disso, o garoto nada sabia nem nunca ficaria sabendo.
Ele pegou a taça, com cuidado, a lavou, tirando toda
a poeira e, ao secá-la com um pano, viu o quanto era bonita, com sua cor
dourada e todas as suas pedrarias. Sabia que a taça deveria ter um alto valor,
mas não se interessava por aquilo naquele momento.
Sem cerimônias, o garoto pegou a taça já limpa e a
colocou na fonte. Ao vê-la cheia do líquido cristalino, puxou-a para fora e
sorveu o conteúdo sofregamente. Se houvesse o fantasma ou o espírito de alguma
das facções ali, ainda aguardando para ver o que aconteceria ao mundo quando
ela fosse tocada, teria se decepcionado amargamente.
Nada aconteceu. O mundo não foi salvo de suas
próprias maldades, tampouco condenado à danação eterna. Aquela taça, a taça da
discórdia que havia provocado a morte de tantas pessoas em seu nome, no fim,
era apenas uma taça.
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