No Mundo Lateral, uma das muitas subdivisões e
revisões do próprio Protomundo, havia uma loja que nunca estava aberta, mas que
nunca fechava e era chamada de Loja dos Segredos. Para chegar a ela, não se
passava por uma porta, mas pelas frestas e vãos da própria realidade. Era uma
daquelas lojas de não-lugar, que se recusavam a existir no mundo real, não
importando o quanto isso pudesse ser considerado indigno.
Seu mestre era Dom Raphael Joaquim de Santana primeiro
e único, guardião de todos os segredos e fofoqueiro profissional. Por mais
absurdo que possa parecer, um título não anulava o outro, pois os segredos que
ele guardava só poderiam ser revelados se o próprio dono deles, e não uma
duplicata, gêmeo maligno ou parente mais velho, requisitasse. Mesmo depois de
mortos, os segredos só se abririam se o próprio espírito pedisse e autenticasse
a cópia em três vias (uma era para o cartório, claro).
Por outro lado, ser fofoqueiro profissional era um
trabalho hercúleo, já que o homenzinho tinha a obrigação moral de espalhar
todos os segredos que ouvisse e não estivessem trancados em seu cofre
antienxeridos. O problema surgia quando ele não queria fazer isso, mas era
forçado a se submeter, como no caso dos ninjas de pedra sabão.
Alguém disse que havia uma pedra sabão que, esculpida,
ganhava vida e autonomia de acordo com a forma que lhe fosse dada. É claro, o escultor seria seu mestre, então a pedra obedeceria a todos os seus comandos.
Não é preciso dizer que uma caçada pela pedra especial foi empreendida. E
também não é preciso acrescentar que alguns dos que conseguiram seu quinhão
eram tão inábeis em esculpir, que suas criações, deformadas e grotescas,
conseguiam apenas gritar: “Me mate, me mate!”, ou pulavam de precipícios
(quando eram pequenos, uma mesa poderia se passar por um penhasco) para se
estilhaçarem no duro chão. Alguns tentavam contornar a dificuldade pedindo a
escultores profissionais que fizessem o serviço em seu lugar, mas isso causava
problemas, já que as criações não eram capazes de obedecer a outro que não seus
escultores e, por mais que alguns profissionais tivessem sido gentilmente
sacrificados na tentativa de se ganhar controle sobre as esculturas, elas
imediatamente perdiam sua ânima e não se moviam. Claro que a solução para isso
era torturar o escultor e colocá-lo a seu serviço, mas tais relações de
trabalho costumavam se encerrar de forma unilateral com gargantas cortadas ou
com os monstros de pedra sabão se jogando sobre a cabeça do contratante. Enfim,
não era uma situação satisfatória.
Dom, como os íntimos o chamavam, tinha, é claro, sido
chamado para espalhar uma notícia falsa sobre a pedra, assim poucos a
procurariam e isso geraria uma vantajosa reserva de mercado. Ele relutou muito
em inventar tal história, mas foi convencido por dois seguranças enormes e uma
faca de caça no pescoço. Mesmo não se sentindo à vontade, o homem aceitou a
encomenda e espalhou aos quatro ventos e por todos os pontos cardeais
intermediários que as pedras sabão mágicas tinham começado uma epidemia.
Aqueles que criassem muitas esculturas acabariam se transformando em estátuas
para sempre. O exemplo que Dom dava era de que um dia, um homem (de quem,
obviamente, ninguém havia ouvido falar, tinha criado sete pequenos ninjas de
pedra sabão. Era um número pequeno e não gastava um bloco grande da pedra. E,
até aí, tudo bem. Nenhum mal veio disso. Porém, um dia, um dos ninjas havia se
espatifado muito além de qualquer reparo. O homem criou um novo, pois ele
gostava muito do número sete. A partir daí, tudo voltou ao normal, até que
outro, outro e outro ninja foram quebrando, perdendo pedaços e tendo que ser
substituídos. O homem pegava mais pedra e criava novos ninjas, não era
problema. Porém, sem que ele percebesse, sua saúde ia deteriorando cada vez
mais. Seus dedos ficaram com artrite, sua coluna curvou, lhe dando uma
corcunda, seus olhos começaram a ficar cegos de catarata e seus pulmões sempre
chiavam quando ele respirava, dando ao homem uma tosse horrível. Pouco tempo
depois, ele morreu. Seus ninjas, claro, pararam de ser mover e viraram bonecos
comuns, desprovidos de vida. – Esse foi o boato que o velho comerciante foi
contratado para espalhar.
A fofoca se espalhou de forma tão alarmante que a
reação saiu do controle. As pessoas começaram a temer a pedra de tal forma que
muitas delas destruíram suas próprias criações, mesmo que não apresentassem
nenhum dos sintomas da “doença da pedra”. E, caso tivesse algum deles, aí a
pessoa entrava em desespero e não foram raros os casos de suicídio. Na verdade,
o mundo virou um caos.
Alguns poucos defensores das esculturas entraram em
guerra contra todo o resto do mundo e isso não foi algo bonito de se ver.
Os escultores se uniram e criaram monstros de todos os
tipos e formas, de tamanhos variados e capazes de nadar, voar e até mesmo
soltar fogo. Os homens que contra eles lutavam o faziam sem estátuas, mas
tinham armas, bombas e raiva.
No fim das contas, os escultores perderam e todas as
suas criaturas foram destruídas. Não sobrou uma para contar a história. Depois,
foram eles que não sobraram para contar a história. Claro que o outro lado teve
muitas baixas e o mundo não iria se recuperar tão cedo, mas os que lucravam com
a guerra ganharam rios de dinheiro e foram felizes para sempre em outro
universo, então tudo acabou bem para eles. Até mesmo foram visitar o dono da
loja de segredos e lhe pagaram um bônus. Pelos bons serviços prestados, eles
disseram, antes de saírem por uma fenda que, se pudesse, o homenzinho teria
fechado naquele mesmo instante, de tanta raiva que sentia daqueles canalhas.
Porém, recorrendo a toda sua calma, gentileza e educação, ele apenas deu uma
banana e mostrou o dedo do meio para os vilões que, certamente, em pouco tempo
estariam recolhendo toda a pedra sabão de um universo para vender em outro,
onde ninguém tivesse ouvido o boato.
Deixado sozinho, o homem pensou em reconsiderar sua
política de sempre ter a loja aberta a qualquer um, mas sabia que os clientes
nunca o deixariam em paz se fizesse isso. Ademais, o Mundo Lateral já estava mesmo
em ruínas, então não havia nada a ser feito.
Levantando, sacudindo, a poeira e dando a volta por
cima, o mestre da loja se certificou de que ninguém chegaria por nenhuma das
fendas, colocou uma placa de “Almoçando” e foi para os fundos da loja. Passeou
por um labirinto imaginário, deu duas voltas em uma chave de mistérios
insondáveis e se viu em frente ao local que guardava as informações que seus
clientes lhes pediam para manter em sigilo.
Dom Raphael Joaquim de Santana abriu o cofre de
segredos e entrou nele. Olhou em volta com cuidado e, quando percebeu que não
seria seguido, fechou a porta. Caminhou todas as seções até a letra “N”, parou
diante de uma imensa galeria, acendeu a luz e conferiu se o lacre de silêncio
estava intacto. Olhou para inúmeros pedaços de pedra, alguns já se desfazendo a
ponto de virar areia. Suspirando, ele meneou a cabeça e se perguntou como
alguém poderia ter criado uma história tão próxima da realidade. Ao sair da
seção “N”, apagou a luz, deixando para trás todos os milhares de cacos. No meio
dos fragmentos disformes, imóveis como no dia em que perderam sua ânima,
descansavam sete pequenos ninjas de pedra sabão.
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