Àqueles que amam, um feliz dia! Àqueles que ainda não amam, um feliz dia! Àqueles que já amaram... bem, vocês me entenderam, não é mesmo?
Este texto é uma quebra de protocolo, eu sei, mas não resisti a postá-lo, já que o escrevi durante a semana que passou, sem saber o porquê. Acho que agora entendi, foi para dar um presente de dia de namorados para todos nós.
Sim, é piegas, mas é bonitinho, confessem!
O texto é longo, não vou enganar, mas acho que ficou gostoso de ler. Leiam e me digam o que acharam, ok?
Feliz Dia dos Namorados, novamente!
Amelie
O que posso dizer de Amelie? A mais bela francesa que já vi em minha vida? Que ela era dona de um sorriso fantástico capaz de melhorar meu dia imediatamente? Que nosso amor era tão leve quanto o ar e tão profundo quando o centro da Terra? Que não poderia viver sem ela e que minha vida perdia sentindo com sua ausência? Sim, eu poderia dizer isso tudo e até mais, pois Amelie não era menos do que a razão de minha existência. Sim, Amelie era minha vida.
Agora pensando, nem mesmo eu sei dizer o quão grande foi minha sorte em conhecê-la e o quanto nosso amor significava para mim durante o tempo em que fomos um só. E, mesmo que os anos cruéis tenham passado rápido, lembro-me de tudo com a vivacidade de um garoto. Acho que sou capaz de descrever nos mínimos detalhes como ela estava no dia exato em que a conheci.
Conheci-a em um daqueles dias que pediam praia. Para meu azar, ou sorte, eu não estava ali por diversão. Era um dia de trabalho e eu havia aproveitado meia hora de meu almoço para andar despreocupadamente pelo calçadão. A camisa social começava a se grudar ao corpo, mas eu não ligava. Minto, ligava, sim, mas estava cansado de seguir tantas regras. Em minha defesa, digo que procurei um quiosque e me sentei à sombra de um dos inúmeros guarda-sóis que lá havia, bebericando uma água-de-coco enquanto meditava sobre voltar ao trabalho. Foi nesse momento, por conta de um despreocupado aceno de cabeça em direção à areia que eu a vi.
Lembro-me dos seus cabelos cacheados tingidos de vermelho que desciam até as costas. Lembro-me dos olhos de um azul celeste tão belo que pareciam feitos de oceanos. Lembro-me da pele macia, amorenada pelo sol do Rio de Janeiro pela frequência assídua à praia que se notava nas marcas do biquíni que usava, com a canga amarrada na cintura e o imenso chapéu que protegia a cabeça do sol de verão. Lembro-me, por fim, do gingado, de como seu corpo rebolava sensualmente em uma divertida e levemente desastrada tentativa de imitar as cariocas. Tudo nela era perfeito. A minha “petite française” era perfeita.
Se eu disser que nossos olhares se cruzaram e foi amor à primeira vista, estarei mentindo. Nossos olhares se cruzaram, sim, mas foi por menos de um segundo e ela não olhou para mim novamente. Eu mesmo não reparei muito nela naquela primeira vez. Fiz o que nós homens costumamos fazer: observei o corpo, não a alma. Ela seguiu gingando desajeitadamente e eu voltei ao meu coco. Tudo teria terminado por ali, se...
Dois dias depois voltei à praia, desta vez na qualidade de banhista. Não sou do tipo que vai à praia apenas para dourar o corpo, gosto de me molhar e, por conta disso, fico o mais perto do mar que posso. Mas o final de semana enche a praia e a única maneira de ficar perto da água era entrando nela. Aquilo me cansou rápido e, em vez de aproveitar a praia por mais tempo, resolvi sair da areia e voltar para minha casa. Eu a vi no calçadão pela segunda vez.
Desta vez a francesinha estava praticamente irreconhecível: usava roupa de corrida toda azul e uma viseira que lhe cobria o rosto quase por completo. Os olhos estavam escondidos por trás de óculos escuros e os cabelos presos em um rabo de cavalo. Sobre o pulso um relógio medidor de distâncias e, nos pés, tênis de uma marca famosa apenas em seu país de origem. Sim, eu sei que sou muito detalhista.
Não sei dizer se a culpa deste segundo encontro foi mais dela ou minha. Acho que de ambos, pois estávamos os dois entretidos em nossos próprios mundos e não reparamos um no outro até que esbarrássemos com força. Por incrível que pareça, fui eu quem quase caiu no chão depois do impacto. Acho que a velocidade da corrida lhe deu mais impulso.
Ela parou apenas o suficiente para saber se eu estava bem. Quando da confirmação, seguiu seu curso, mas não sem antes olhar para trás e me lançar um sorriso leve. Aquele foi o momento em que ela tomou meu coração de assalto. Acho que fiquei ainda um bom par de minutos olhando-a sumir ao longe, ao mesmo tempo em que meus pés se plantavam no chão, recusando-se a se moverem. Aquilo muito me doeu na mesma hora: eu havia me apaixonado por alguém que possivelmente nunca mais veria na vida.
Meses se passaram e meu amor não diminuía. Penso que cheguei a ficar deprimido, pois meus colegas de trabalho começaram a se preocupar comigo. Meu desempenho na empresa não chegou a cair, mas eu havia me tornado uma pessoa mais calada, sem ânimo. Aquela mulher tinha sugado toda a minha alegria de viver e levado consigo ao se trancar em meu coração. A minha sorte é que, como dizem por aí, a terceira vez é a que conta.
A terceira vez que nos encontramos foi muito engraçada – para ela. Para mim, foi um verdadeiro desastre!
Eu estreava uma camisa nova e estava atrasado. Tinha ficado de encontrar com alguns amigos e, graças a um blecaute em meu bairro, saí muito depois do que deveria. Tive que tomar um banho gelado e meu humor não estava dos melhores. Para completar, a energia elétrica voltou assim que saí do banho e eu fiquei ainda mais irritado. Mas me contive, pois era uma diversão entre amigos e não poderia azedar tudo com meu baixo-astral. A essa altura eu quase acreditava ter esquecido Amelie. Quase, pois vê-la de novo despertou em mim tudo o que eu achei que tinha conseguido enterrar.
Meus amigos me esperavam em um famoso bar da Cinelândia, que fica próximo ao Teatro Municipal. Apesar de não beber, a companhia dos amigos vale o sacrifício de um bar vez por outra.
Eu tinha acabado de sair do metrô e ia apressado em direção ao bar, quando passei próximo a uma barraquinha de cachorro-quente. Normalmente fico longe de qualquer coisa que possa me sujar, mas não teve jeito. A cliente da barraquinha virou-se bruscamente depois de comprar seu lanche. Com isso, o seu cachorro-quente com muito molho, catchup, mostarda, maionese e sei lá eu mais o que, virou todo em cima de mim. Fiquei tão irritado e xinguei tanto, que só fui reparar em quem tinha feito aquilo quando olhei direto para aquele rosto de anjo que me pedia mil desculpas em um português com forte sotaque europeu. Eu fiquei paralisado na mesma hora. Quando reparou melhor em mim, ela acabou me reconhecendo e o constrangimento se transformou em uma gargalhada gostosa, que encheu meus ouvidos de música só de ouvi-la. Aquele foi o momento em que decidi que aquela mulher não poderia partir de minha vida nunca mais. Finalmente descobri seu nome e, aproveitando o ensejo, convidei-a a ir comigo até o bar onde meus amigos me esperavam. Fiquei surpreso e contente quando ela aceitou o convite. Ela parecia até ter adivinhado o que aconteceria, pois sua roupa era a de alguém pronta a sair. Descobri depois que ela havia começado a trabalhar no Centro recentemente, o motivo dos trajes.
Quando chegamos, meus amigos brincaram comigo por conta da demora, mas perdoaram de imediato meu atraso quando viram minha companhia. Como bons camaradas que eram, deixaram Amelie bem à vontade enquanto eu tratava de limpar a sujeira de minha camisa o máximo que pude. Não adiantou muito e só consegui ficar com uma mancha enorme e engordurada na camisa, que agora também estava molhada. Notei, no entanto, que meu humor havia melhorado muito mais, um dos pequenos milagres de se estar com alguém de quem se gosta.
A noite foi excelente e foi apenas um dos inúmeros encontros que tive com Amelie durante aquele ano. Rapidamente nos envolvemos e em pouco tempo estávamos casados, eu e minha “petite française”, a mais linda de todas as mulheres.
Os anos foram bons conosco, apesar de todos os altos e baixos que costumam circundar uma família normal. Tivemos brigas? Claro! Erramos? Muito! Odiamo-nos? Várias vezes. Mas nosso amor sempre foi maior do que tudo e nos rendeu três lindos filhos e cinco maravilhosos netos. Posso dizer que tivemos uma vida muito boa. Pelo menos, até Amelie descobrir que tinha câncer.
Aquele foi um baque tremendo para todos nós. Não a perspectiva da morte, pois isso já é esperado quando se tem idade avançada, mas o anúncio do sofrimento. Amelie lutou bravamente até o fim. Ouso dizer que lutou mais contra os efeitos colaterais da quimioterapia do que contra a doença em si. No fim, minha Amelie já estava perdendo sua lucidez e esquecia-se de todos. Menos de mim, que estava sempre ao seu lado.
Choro muito ao me lembrar de seu último dia, pois me parece que foi há pouco: ela ali, deitada naquela nossa cama, em vez de uma de hospital, comigo segurando sua mão e passando os dedos sobre seus cabelos que já haviam aceitado a branquidão. Seus olhos, antes tão vívidos, apagavam-se aos poucos pela dor da sobrevivência. A pele já não era firme e sua cor já acompanhava a dos cabelos. Eu sabia que Amelie não veria a chegada do dia seguinte. Ela também sabia.
Em seus últimos momentos, as minhas lágrimas fingiram secar para lhe dar forças para a passagem. Antes de se despedir, Amelie falou comigo e, pela primeira vez, me contou como ela, sim, havia se apaixonado por mim desde a primeira vez em que nossos olhos se cruzaram nas areias da praia. Ele me contou de como seu amor apenas aumentou quando me derrubou no calçadão e de como tivera a certeza de que eu era o homem da sua vida ao me sujar sem querer e ouvir minha voz pela primeira vez, mesmo que falando muitos palavrões. E ela me agradeceu! Agradeceu-me por não deixá-la sozinha naquele mundo imenso, por sempre estar ao seu lado e por não ter partido antes dela. Ela me agradeceu pelas brigas, pela raiva, pelo bater de portas, pelas reconciliações, pelos filhos e netos de quem não conseguia se lembrar muito bem e por tudo o mais. Mas ela me agradeceu principalmente pelo amor devotado em todos aqueles anos juntos. E pelo consolo de estar ali, sendo somente dela naquele momento final. Eu me segurei mais ainda para não chorar, enquanto as lágrimas dela desabavam e encharcavam os lençóis. Não chorei por que não quisesse, mas porque não podia deixar que ela partisse triste pelo meu sofrimento. Deixei que ela aliviasse seu coração e a beijei apaixonadamente pela última vez, abraçando seu corpo junto ao meu para que ela dormisse. Não fiquei surpreso quando ela não acordou.
Os preparativos para o velório e o enterro foram tão rápidos que eu nem percebi o que aconteceu. Fiquei anestesiado de tal forma que achei que nunca mais sentiria algo novamente. Esta, porém, não era a verdade. Naquela primeira noite em casa, sozinho, depois que todos haviam ido embora de volta para suas vidas eu chorei. Chorei tanto que pensei que iria me desfazer em lágrimas. Chorei porque minha vida havia se acabado e eu agora percebia isso mais nitidamente do que nunca. Chorei porque Amelie nunca mais estaria ali e aquela casa ficaria eternamente vazia.
Hoje faz três anos exatos de sua morte e tenho sentido dores fortes em meu braço esquerdo o dia inteiro. Por sorte, todos os documentos estão em ordem e a herança será dividida igualmente entre todos. Espero que a casa em que cresceram não seja vendida, mas eu não estarei aqui para descobrir se for. A dor em meu braço fica cada vez mais forte.
Passo meus olhos já fracos por toda a casa e me despeço de todos os cômodos, assim como de todas as lembranças boas e ruins. Encaminho-me a passos lentos, porém firmes, para o segundo andar. A cama é a mesma de três anos atrás. Acho que até o lençol e os travesseiros não mudaram. Pouco antes de chegar à cama a dor é tão forte que me tira o fôlego e quase desmaio. Resisto e sigo em frente, até me ajeitar confortavelmente sob os cobertores. A última onda de dor é tão forte que minha visão se turva e entro em um túnel de escuridão. Quando saio do outro lado, vejo minha querida Amelie. Ela não está um dia mais velha do que quando a vi naquela praia pela primeira vez. A pele está firme e bronzeada e os olhos recuperaram a vivacidade. Ela vem seguindo em minha direção e me aperta em seus braços, falando baixinho ao meu ouvido e me chamando de seu “grand amour”. Depois, com seu português já quase sem sotaque, me convida a segui-la, o que faço alegremente, notando que também não pareço mais velho do que quando a conheci. Eu estendo minha mão e ela se pendura em meus ombros, arrastando-me consigo em direção a uma luz tão forte quanto a do sol. Será que lá para onde vamos tem praia? Acho que já vou descobrir – penso, com um sorriso no rosto, enquanto a sigo para um mundo maravilhoso e desconhecido...
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