E se um homem resolvesse destruir todo o conhecimento de todas as civilizações de todos os tempos? Não quero nem pensar no que aconteceria. Porém, mesmo não querendo, acabei imaginando esta terrível distopia. Devo dizer que o resultado foi surpreendente.
Aos que possam se sentir ofendidos com o que que escrevi, ou seja, "os senhores das letras", este texto não foi escrito para vocês. Aos que têm o potencial da grandeza: este texto foi feito para vocês.
Saindo do personagem, eu gostaria de dizer que este texto fecha o ciclo de contos e textos sobre palavras. É um texto recente, sobre a capacidade das ideias e palavras. É um texto, também, que homenageia indiretamente Platão e seu mundo das ideias, além da história do Mito da Caverna. Espero que gostem.
Sintam-se à vontade para comentar.
Abraços,
Bruno Leandro (o humilde autor e criador deste blog)
A Rebelião das Palavras
Bruno Leandro
Foi horrível o dia em que começaram a queimar os livros.
Obras completas de Virgílio, Goethe, Shakespeare, Camões, Joyce, Homero, Machado... tantos e tantas outros e outras que não se poderia enumerar.
Obras do passado do presente e até as que visavam o futuro sumiam em segundos, consumidas pelas chamas.
Heróis tentavam, sem sucesso, resgatar e preservar um ou outro livro, mas eram todos eliminados sem dó. Livros, não pessoas.
Àqueles que achem que computadores foram usados para salvar as literaturas em formato digital, ao menos, enganam-se. Vírus específicos foram disseminados muito antes e de muitas maneiras. Estávamos sós com nossa ignorância e desespero.
Homens e mulheres que planejavam ressuscitar os autores de suas memórias foram deportados e exilados para lugares onde se dizia não ser possível produzir pena ou papel. Apenas os que nunca haviam tido contato com nem produzido literatura foram poupados.
Ninguém foi morto, ninguém foi torturado, mas não era preciso. O mundo ficou em silêncio e perdeu sua cor.
O responsável por tais crimes, o novo ditador mundial, calou-se sobre seus motivos e ninguém o questionou. Todos tinham medo do que seria capaz um homem que mandava queimar livros e destruir palavras.
Não se sabe como, nem quando, mas uma pequena resistência de letras começou justamente entre os que não haviam conhecido as literaturas: eles começaram a escrever. Primeiro, timidamente, poesias simples e contos de fadas inventados a partir de suas histórias de vida, de seus medos e anseios. O déspota assumiu a forma de ogros e madrastas, de bruxas e feiticeiras más, dos maiores vilões que poderiam existir. Os que se levantaram contra ele eram heróis erráticos, medrosos a princípio, que iam ganhando formas mais imponentes e poderosas à medida que o medo morria.
Com o tempo, com o passar dos anos, a literatura foi retomando sua cor, força e poder nos subterrâneos. Ávidos, os homens escreviam como se não houvesse amanhã e como se sua religião fosse feita de pena e tinta, do papel escrito.
O mundo foi retomando sua cor e som.
As produções eram feitas em ritmo cada vez mais acelerado, como se nunca tivessem sido abandonadas. A revolução das palavras marchava a passos largos. Os homens atingiram os mais altos ápices de criatividade. Alguns, de sua própria imaginação, fizeram homenagens ao que poderia ter sido o já desconhecido passado: falavam de gregos e romanos como se fossem parentes queridos e de homens das cavernas e de todas as nacionalidades e raças. Criavam e criavam e suas produções não tinham fim.
De uma flor que havia desabrochado um jardim infinito se formara.
Um dia o tirano, já idoso e em seu leito de morte, mandou chamar homens à sua presença. Eles foram e, depois de seu falecimento, saíram de lá chorando. Tanto pelo que haviam descoberto, quanto por ele.
O imperador sempre soubera sobre a rebelião. Na verdade, a havia desejado com todas as suas forças. Ele queria que os homens criassem.
Muitos podem se perguntar por que, então, ele havia destruído todas as obras. Os que se fizeram essa pergunta ficaram chocados com o que descobriram. Dentro do palácio, em inúmeras câmaras secretas em seu subsolo, que abarcava uma parte considerável do mundo, as versões originais e digitalizadas de todas as obras estavam guardadas, sãs e salvas. Mas esta não foi a descoberta mais chocante. Isso ainda estaria por vir.
Os homens, ávidos por saber sobre o passado, começaram a ler os livros que lhes haviam sido devolvidos. Seu espanto foi enorme: eles conheciam aquelas obras. Eles as haviam escrito em sua rebelião. Não uma ou duas, mas todas. “Fausto”, “Romeu e Julieta”, “Os Lusíadas”, “A Odisséia”, “Dom Quixote”, “Acordai e Cantai”, “Branca de Neve”, “Sagas Irlandesas”... Estas e outras, e muitas outras, e todas as outras, foram escritas por aqueles homens. Como poderia aquilo ter acontecido? A resposta havia vindo da boca do próprio soberano, que a gravara em vídeo quando ainda era jovem, para que não restassem dúvidas:
“Sei que parece que cometo um crime”, iniciava ele. “Mas este é um experimento em nome da própria humanidade. O que faço é tentar provar que somos seres cíclicos, que somos sempre capazes de produzir o novo, mas também de reproduzir o antigo sem muletas.
Estou dando ao mundo a oportunidade de aspirar ao melhor, de se reinventar. De se reescrever. Quero provar com isso que somos capazes e, também, que as obras são maiores do que seus criadores. Quero provar que as ideias sobrevivem aos nomes e que todos possuem dentro de si a grandeza de alcançá-las.
Digo, também, que por isso fui obrigado a banir os literários e os estudiosos e os que já escreveram. Eles poluiriam sua capacidade de serem grandes, pois sempre os comparariam com seus antecessores, como se vocês fossem incapazes de ter valor próprio. Porém, não se preocupem com eles, todos continuam produzindo em uma sociedade à parte, onde ainda discursam sobre os benefícios do passado sobre o presente. Com minha morte eles estarão livres para voltar, se assim o desejarem.
Quero, no entanto, deixar para vocês um recado final: vocês se provaram capazes e produziram obras maravilhosas sem a ajuda e sem as muletas do passado. Foram tão capazes que até o refizeram. Não deixem que ninguém lhes diga que são inferiores.” – com estas últimas palavras o testamento havia terminado.
Ao entenderem a grandeza do que lhes havia sido dito, os homens choraram.
Se os teóricos voltaram? Sim, em parte. E, dentre estes, alguns ficaram maravilhados com o que havia sido produzido em suas ausências. Outros, porém, tentaram restabelecer uma ditadura do pensamento, queriam julgar os méritos das produções dos que ficaram e, até mesmo, acusá-los de plágio e cópia. Mas os homens haviam aprendido com seu bondoso monarca e se recusaram ao julgamento. As palavras do que os inferiorizavam foram jogadas ao vento como se não tivessem validade alguma.
Aquela sociedade aprendeu a reconhecer seu próprio valor e nunca mais os homens se importaram com as críticas que visavam destruí-los e adestrá-los. Por muito e muito tempo continuaram a produzir e o mundo floresceu mais e mais.
A liberdade das palavras havia retornado. Ironicamente, graças ao homem que fingiu prendê-las.
PS: Às vezes a vida imita a ficção. Eu nunca tinha ouvido falar de "Acordai e Cantai", (Awake and Sing, de Clifford Odets) e, por brincadeira, resolvi pesquisar na internet. Não é que existe mesmo? Mistérios da natureza humana...
muito interessante
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Jean! E seja bem-vindo ao blog!
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