A história de hoje, na verdade desta semana, ficou muito grande. Então, resolvi seriá-la. Vou dividir em quatro postagens, uma a cada dia, não tanto para criar suspense, mas mais porque eu sei que as pessoas não gostam de ler coisas muito longas. E, acreditem, esta ficou um pouquinho longa para ser postada em um dia.
Além do Espelho
Bruno Leandro
Parte 1
Começou há poucos dias
e eu ainda não entendi o que está acontecendo. Desde que Ana chegou à minha
casa, sinto uma aura diferente no ar. Acho que ela trouxe os espíritos de seus
ancestrais consigo. Porém, se de fato é isso, como não consigo notá-los? Eu, o
maior vidente de todo o mundo, sem conseguir perceber a presença de algum
espírito? Isso está errado, muito errado. Sei que Ana é uma bruxa poderosa, mas
nem ela deveria conseguir escondê-los de mim. Preciso descobrir seus planos,
antes que ela destrua a todos que vivem nesta casa. Se pelo menos eu pudesse
avisá-los!
Frustrado, fechei meu diário, selando-o com uma poderosa
magia feita com meu sangue. Não apenas meus pensamentos, mas muitos segredos da
família Hearthgrave estavam escondidos em seu interior. Se qualquer um de
nossos encantamentos mais poderosos caísse em mãos erradas, a ira que Rasputin
despejara sobre a cratera que um dia se chamou Rússia não seria nada comparada
ao Armagedom que se abateria sobre a Terra. Se eu pudesse queimar tal diário,
já o teria feito. Infelizmente, sua destruição liberaria maldições terríveis,
de igual ou pior efeito. Estar entre a cruz e a espada tem um aspecto bem real
quando se vive em uma família como a minha. Não, não havia jeito. Eu mesmo
teria que resolver o assunto com Ana, nem que eu precisasse morrer para
impedi-la de completar seus intentos malignos.
Saí do compartimento secreto sob a lareira da biblioteca e
chamei Dumas, meu fiel serviçal que acompanhava minha família há três séculos
e meio. Nem mesmo sua morte o havia impedido de continuar a nosso lado e,
graças a tal empenho, seu corpo ectoplásmico ainda habitava o plano dos
viventes, mesmo que ele já não tivesse assuntos inacabados. Rápido como era de
sua natureza, Dumas surgiu e, após ouvir minhas instruções e ser dispensado
para outra ala do castelo, preparou-se para cumprir sua parte em meu plano.
Claro que demoraria um pouco, já que nossa inimiga se passava por uma parente
distante e, por isso, eu não poderia tentar desmascará-la na frente de toda a
família, ou, com o perdão do trocadilho, o feitiço se voltaria contra o
feiticeiro. Não, Ana e eu teríamos de estar sozinhos, ou meus planos não dariam
certo.
Após ser deixado por Dumas, fui para meus aposentos e, tendo
trocado minhas roupas de pesquisa por algo mais confortável e apropriado à
ocasião, apresentei-me à sala de jantar, onde era esperado pela bruxa e por
quatro de meus familiares: meu irmão e três irmãs. Nossos pais haviam se
recolhido cedo, indispostos. Eu temia que isso já fosse parte das maquinações
da bruxa, mas, de novo, eu não conseguia perceber seus espíritos se
movimentando pela casa. Eu precisava descobrir como ela o fazia, pois era a
única chance de salvar a todos.
Ana estava encantadora e conseguia esconder muito bem sua
aura. Meus irmãos, ainda inexperientes nas artes, eram incapazes de notar seus
dons sombrios. Confesso que até mesmo eu, capaz como sou, tive alguma
incerteza. Se já não a conhecesse de longa data, diria se tratar de uma humana
comum. Mas, não. Ana era perigosa, muito perigosa.
O jantar transcorreu normalmente e nos tratamos de maneira
bastante civilizada e até mesmo cordial. Por mais que eu sentisse vontade de
estrangular aquela bruxa naquele exato momento, eu sabia que, se fosse de sua
vontade, ela rasgaria a garganta de meus irmãos e beberia seu sangue em um de
seus rituais profanos. Ela tinha motivos para seu comportamento e não seria eu
a agir primeiro. A segurança de todos estava em primeiro lugar.
Logo em seguida ao jantar, minhas irmãs se retiraram para a
sala de jogos e meu irmão, cansado pelo longo dia, recolheu-se a seu quarto um
pouco mais cedo. Meu único alívio era que tanto um quanto outro cômodo era
protegido e nenhum deles poderia ser molestado pelos asseclas de minha
adversária.
Tendo sido deixados a sós, nos encaramos por alguns
instantes, mas não lhe dei a satisfação de arrancar de mim as primeiras
palavras. Cansada de jogar comigo, a bruxa inclinou-se como se me fosse contar
um de seus sórdidos segredos e falou, a meio-tom:
“É uma satisfação vê-lo novamente, meu querido primo. Senti
saudades de você durante o dia inteiro. Tem se esgueirado muito por aí
ultimamente?”
Seu tom de voz debochado deu-me náuseas e tive que me conter
para não agredi-la naquele momento. Em vez disso, o único que fiz foi
responder-lhe:
“Estive ocupado com assuntos particulares. Como sabe, tem
havido uma infestação de pragas neste castelo há cerca de poucos dias. Algo de
que pretendo me livrar o quanto antes, é claro”.
“Meu bem, acho difícil que você consiga conter essa infestação, mas o desafio a tentar.” –
disse ela, com os olhos brilhando perigosamente. Ao ver isso, apertei com força
o amuleto que trazia entre as vestes, mas ela recuou logo e não houve
confronto. Apesar disso, a tensão entre nós apenas aumentava. Ela sabia que eu
era fraco o suficiente para não conseguir atacá-la. No entanto, se ela se
atrevesse a se lançar sobre mim, meus feitiços de defesa a destruiriam em um
instante.
Ficamos nos encarando por um longo tempo, um sem saber qual
seria o próximo movimento do outro. Ficaríamos nisso por muito tempo, não fosse
um grito ter vindo do andar superior.