segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Além do Espelho - primeira parte.

A história de hoje, na verdade desta semana, ficou muito grande. Então, resolvi seriá-la. Vou dividir em quatro postagens, uma a cada dia, não tanto para criar suspense, mas mais porque eu sei que as pessoas não gostam de ler coisas muito longas. E, acreditem, esta ficou um pouquinho longa para ser postada em um dia.


Além do Espelho
Bruno Leandro


Parte 1

Começou há poucos dias e eu ainda não entendi o que está acontecendo. Desde que Ana chegou à minha casa, sinto uma aura diferente no ar. Acho que ela trouxe os espíritos de seus ancestrais consigo. Porém, se de fato é isso, como não consigo notá-los? Eu, o maior vidente de todo o mundo, sem conseguir perceber a presença de algum espírito? Isso está errado, muito errado. Sei que Ana é uma bruxa poderosa, mas nem ela deveria conseguir escondê-los de mim. Preciso descobrir seus planos, antes que ela destrua a todos que vivem nesta casa. Se pelo menos eu pudesse avisá-los!

Frustrado, fechei meu diário, selando-o com uma poderosa magia feita com meu sangue. Não apenas meus pensamentos, mas muitos segredos da família Hearthgrave estavam escondidos em seu interior. Se qualquer um de nossos encantamentos mais poderosos caísse em mãos erradas, a ira que Rasputin despejara sobre a cratera que um dia se chamou Rússia não seria nada comparada ao Armagedom que se abateria sobre a Terra. Se eu pudesse queimar tal diário, já o teria feito. Infelizmente, sua destruição liberaria maldições terríveis, de igual ou pior efeito. Estar entre a cruz e a espada tem um aspecto bem real quando se vive em uma família como a minha. Não, não havia jeito. Eu mesmo teria que resolver o assunto com Ana, nem que eu precisasse morrer para impedi-la de completar seus intentos malignos.

Saí do compartimento secreto sob a lareira da biblioteca e chamei Dumas, meu fiel serviçal que acompanhava minha família há três séculos e meio. Nem mesmo sua morte o havia impedido de continuar a nosso lado e, graças a tal empenho, seu corpo ectoplásmico ainda habitava o plano dos viventes, mesmo que ele já não tivesse assuntos inacabados. Rápido como era de sua natureza, Dumas surgiu e, após ouvir minhas instruções e ser dispensado para outra ala do castelo, preparou-se para cumprir sua parte em meu plano. Claro que demoraria um pouco, já que nossa inimiga se passava por uma parente distante e, por isso, eu não poderia tentar desmascará-la na frente de toda a família, ou, com o perdão do trocadilho, o feitiço se voltaria contra o feiticeiro. Não, Ana e eu teríamos de estar sozinhos, ou meus planos não dariam certo.

Após ser deixado por Dumas, fui para meus aposentos e, tendo trocado minhas roupas de pesquisa por algo mais confortável e apropriado à ocasião, apresentei-me à sala de jantar, onde era esperado pela bruxa e por quatro de meus familiares: meu irmão e três irmãs. Nossos pais haviam se recolhido cedo, indispostos. Eu temia que isso já fosse parte das maquinações da bruxa, mas, de novo, eu não conseguia perceber seus espíritos se movimentando pela casa. Eu precisava descobrir como ela o fazia, pois era a única chance de salvar a todos.

Ana estava encantadora e conseguia esconder muito bem sua aura. Meus irmãos, ainda inexperientes nas artes, eram incapazes de notar seus dons sombrios. Confesso que até mesmo eu, capaz como sou, tive alguma incerteza. Se já não a conhecesse de longa data, diria se tratar de uma humana comum. Mas, não. Ana era perigosa, muito perigosa.

O jantar transcorreu normalmente e nos tratamos de maneira bastante civilizada e até mesmo cordial. Por mais que eu sentisse vontade de estrangular aquela bruxa naquele exato momento, eu sabia que, se fosse de sua vontade, ela rasgaria a garganta de meus irmãos e beberia seu sangue em um de seus rituais profanos. Ela tinha motivos para seu comportamento e não seria eu a agir primeiro. A segurança de todos estava em primeiro lugar.

Logo em seguida ao jantar, minhas irmãs se retiraram para a sala de jogos e meu irmão, cansado pelo longo dia, recolheu-se a seu quarto um pouco mais cedo. Meu único alívio era que tanto um quanto outro cômodo era protegido e nenhum deles poderia ser molestado pelos asseclas de minha adversária.
Tendo sido deixados a sós, nos encaramos por alguns instantes, mas não lhe dei a satisfação de arrancar de mim as primeiras palavras. Cansada de jogar comigo, a bruxa inclinou-se como se me fosse contar um de seus sórdidos segredos e falou, a meio-tom:

“É uma satisfação vê-lo novamente, meu querido primo. Senti saudades de você durante o dia inteiro. Tem se esgueirado muito por aí ultimamente?”

Seu tom de voz debochado deu-me náuseas e tive que me conter para não agredi-la naquele momento. Em vez disso, o único que fiz foi responder-lhe:

“Estive ocupado com assuntos particulares. Como sabe, tem havido uma infestação de pragas neste castelo há cerca de poucos dias. Algo de que pretendo me livrar o quanto antes, é claro”.

“Meu bem, acho difícil que você consiga conter essa infestação, mas o desafio a tentar.” – disse ela, com os olhos brilhando perigosamente. Ao ver isso, apertei com força o amuleto que trazia entre as vestes, mas ela recuou logo e não houve confronto. Apesar disso, a tensão entre nós apenas aumentava. Ela sabia que eu era fraco o suficiente para não conseguir atacá-la. No entanto, se ela se atrevesse a se lançar sobre mim, meus feitiços de defesa a destruiriam em um instante.

Ficamos nos encarando por um longo tempo, um sem saber qual seria o próximo movimento do outro. Ficaríamos nisso por muito tempo, não fosse um grito ter vindo do andar superior.

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