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Além do Espelho - terceira parte.

Além do Espelho
Bruno Leandro

Parte 3


Como fui estúpido! Se eu tivesse guardado o diário comigo, ela não teria a menor chance. Infelizmente, carregar tal fardo a todo lugar não é uma ideia muito boa e fui obrigado a deixá-lo para trás durante o jantar. Eu pretendia voltar logo em seguida, mas a distração dela se mostrou eficaz e acabei deixando os segredos de minha família desprotegidos. Só me restava persegui-la e tentar pará-la ainda dentro de minha propriedade, onde os danos poderiam ser controlados e onde ela não conseguiria quebrar os selos de proteção.

Eu não sabia quantos minutos ela teria de vantagem, mas cria não serem mais do que doze, o tempo que levei para correr até o andar superior e, após ajudar meus pais, para voltar a meus aposentos agora não tão secretos.

Furioso, catei alguns outros amuletos de minha escrivaninha e parti atrás da bruxa. Minha propriedade é um labirinto mágico e estranhos não podem sair dela sem auxílio. Exceto por um lugar: o jardim de inverno. Se eu estivesse certo, ela invocaria um portal para longe assim que chegasse a ele. Se eu não chegasse a tempo, ela ficaria fora de alcance e eu poderia dar meu diário como perdido.

Corri o máximo que pude para o jardim de inverno; porém, quando estava quase chegando, tive uma surpresa desagradável. Como tolo, caí em uma armadilha. Seis espectros barravam meu caminho. Surgidos de superfícies reflexivas, eles se interpunham entre mim e meu objetivo. Tentei atacá-los, mas minhas forças não se comparam a de meus pais. Sou muito fraco e, por conta disso, os monstros não foram sequer afetados pelos encantamentos que fiz. Maldito poder defensivo que não serve para nada! – pensei, enquanto os espectros, com um sorriso maligno no rosto, apenas ficavam parados, como se soubessem de minha fraqueza.

Ao longe, comecei a ouvir a invocação do portal. Ana estava se preparando para sumir. Eu teria, no máximo, três minutos antes que ela conseguisse partir. Tentei forçar passagem, mas nenhum deles se mexeu. A bruxa iria escapar.  Ou não, pois Dumas retornou naquele momento, cumprindo minhas ordens.

Meu fiel serviçal seguira minhas indicações à perfeição e trazia junto de si onze outros espíritos, todos de ancestrais de minha família. Eram mais fracos do que os espectros, mas a proporção de quase dois para um serviria para meus intentos.

Os fantasmas começaram a brigar entre si e não era algo bonito de se ver. Apesar de mortos, brigavam como seres vivos. Dois deles eram feiticeiros e soltavam magias cujos efeitos meu corpo quase podia sentir como se fossem reais. Outros eram cavaleiros e manipulavam suas espadas como se ainda estivessem novas e afiadas. Atacavam os espectros sem piedade e estes, por ainda terem alguma ligação com o mundo dos vivos, pareciam sangrar e gritavam quando atingidos. Ocasião rara, porém, já que seus poderosos golpes arremessavam meus familiares para longe. A única vantagem que os espíritos de meus antepassados tinham era sua resiliência, pois seus golpes não conseguiam fazer grande estrago. Felizmente, como já estavam mortos, não eram feridos e podiam continuar o ataque indefinidamente. Quando seus corpos eram estraçalhados, demorava um pouco, mas eles se reconstituíam. Se um braço era arrancado, ele flutuava de volta ao lugar e, se uma cabeça fosse destruída, se reconstruía logo em seguida.

Apesar de ter os detalhes vívidos na memória, não fiquei vendo aquela cena por muito tempo, já que o meu estava se esgotando. Ouvia Ana pronunciando a frase final e precisava me apressar. Fiz o melhor que pude e, me desviando da terrível batalha que se desenrolava à minha frente, encontrei uma brecha pela qual passei. Um dos espectros, incauto, reagiu e tentou me atacar com seu poder, esquecendo-se de minhas proteções. Seu corpo ectoplásmico foi destruído de imediato e sua alma foi sugada para o outro mundo. Respirei aliviado, vendo que meus amuletos faziam seu trabalho, e corri para o jardim de inverno, seguido de perto por Dumas.

Encontrei Ana de frente para um imenso espelho que havia ali. Ela fazia sua magia favorita e manifestava um portal mais forte, que seria capaz de transportar um vivente através do espaço. O portal estava quase pronto e bastaria ela atravessá-lo para nunca mais ser vista.

Corri para Ana e me interpus entre ela e o espelho. Senti sua indecisão, ela sabia que não poderia brigar comigo sem sofrer as consequências. Satisfeito, me permiti sorrir, já me preparando para pegar meu diário de volta. Porém, acabei sendo surpreendido, quando a bruxa resolveu fazer algo inédito: atacar-me com as mãos nuas! Ana veio para cima de mim com uma fúria tal, que só percebi quando era tarde demais. Ela enfiou as unhas no meu rosto com tanta força que eu urrei de dor! Em seguida, juntando forças que eu não sabia que ela dispunha, socou meu rosto de tal maneira, que fiquei desnorteado. Foi o suficiente. Ela passou por mim e atravessou o espelho. De maneira instintiva, agarrei-me a ela. O portal começou a fechar, mas eu estava dentro. Fui puxado com ela e fomos lançados em alguma dimensão intermediária. Pelo olhar em seu rosto, percebi que ela ficou confusa. O portal não tinha sido feito para carregar várias pessoas e minha intrusão nos tinha lançado em um lugar imprevisto.  Ela me olhou com ódio e me agrediu novamente, chutando minha cabeça com força. Tonto, não tive como reagir e soltei seu pé, rolando para longe.

Aquela dimensão era escura, e a única fonte de iluminação era a saída do portal, alguns metros adiante. Estávamos em um lugar vazio, com versões fantasmagóricas e distorcidas de nosso mundo, mas sem substância. Aquele era o mundo além do espelho, onde eu me perderia eternamente se fosse abandonado. Percebendo isso, persegui Ana, que corria com meu diário em suas mãos. Eu sentia meu rosto arder e o sangue pingar onde ela me ferira. A visão estava borrada e meus passos mais lentos. Tive medo de não conseguir chegar a ela a tempo, sempre o maldito tempo!

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