Pedrinho Feio
Bruno Leandro
Pedro era um garoto introvertido, não muito desenvolvido
para a sua idade e sem habilidades atléticas. Preferia as matérias de
raciocínio e lógica aos exercícios de educação física e não se enturmava com
facilidade. Para uns outros, Pedro era um esquisito, um estranho. E feio.
Não demorou muito para que
garoto ganhasse um apelido maldoso na escola, chamado pelos colegas de “Pedrinho
Feio”. Era humilhado todos os dias com esse apelido e, se fizesse algo errado,
já diziam: “Tinha que ser o Pedrinho Feio”. Se fizesse algo certo, ninguém
prestava atenção ou, por despeito, diziam que fora resultado de sorte.
Pedro vivia em um mundo onde os colegas de escola não eram
estranhos, pois se vestiam iguais, todos com as mesmas roupas da moda, quando
fora do colégio, e todas as meninas eram loiras ou morenas com o cabelo alisado
e pesada maquiagem que as tornava perfeitas. Ele não era popular, pois a
popularidade dependia de uma visão perfeita, dentes certos, altura e peso
certos e, na medida do possível, músculos. Inteligência era valorizada, mas
como um item opcional. Beleza era mais importante.
Um dia, cansado de ser alvo de pancadas verbais e físicas,
de ser destratado por não se encaixar, Pedro teve uma crise. A gota d’água
havia sido quando uma garota, de quem ele gostava em segredo, o humilhara na
frente de todos os outros colegas, pois ele havia feito desenhos dela em seu
caderno. Eram desenhos muito bons, mas isso só aumentou o nojo, pois o esquisito
havia ousado ter um talento para capturar a perfeição.
Pedro chorou – e muito – naquele dia. Decidiu nunca mais
voltar para o colégio e, sim, fugiu de casa. Deixou pra trás seus livros e
sonhos, despedaçados por aqueles que o achavam indigno de ser tratado como
igual.
Pedro arranjou emprego em uma fazenda, mentiu dizendo que
era órfão e que precisava se sustentar. Conseguiu casa, comida e algum
dinheiro. As pessoas não o olhavam de maneira estranha nem o tratavam de forma
diferente por conta de sua aparência e ele se sentia em casa. Apesar disso, seu
coração carregava uma ferida incapaz de sarar.
O tempo passou e, ao longo de dois anos, Pedro carregava
pedras, alimentava o gado, consertava cercas, recolhia ovos de galinhas, tirava
leite de vacas e ajudada nas colheitas. Reconhecendo nele um rapaz estudioso,
seus patrões lhe deram livros, e Pedro não deixou de estudar, apesar de não
mais pisar em uma escola, por medo de ser destratado como já o fora diversas
vezes. Outra coisa que Pedro nunca mais fez, foi olhar em um espelho. Ele
detestava a aparência capaz de causar asco nos outros e decidiu que não tinha
porque se ver em espelhos. Quando, por acaso, via seu reflexo em panelas ou o
rosto refletido na água, era por menos de um segundo e ele nunca focava o
olhar. Não ligava quando estava de óculos, mas, sem eles, evitava encarar a
aparência que, sem saber, mudara ao longo do tempo.
Foram dois anos difíceis para a família de Pedro. Afinal, o
filho os havia abandonado, fugido pela opressão que sofria todos os dias no
colégio, opressão que os pais foram incapazes de perceber o quanto era nociva.
Agora, talvez seu filho estivesse morto, ou entregue a uma vida degradante, era
impossível saber. Eles processaram a escola, mas isso não lhes trouxe paz de
espírito. Nem compaixão a seus detratores, que o consideravam um fraco, uma
maçã podre que não merecia estar entre eles. O passar do tempo não mudava seus
corações.
Um dia Pedro foi avistado, mas quase não reconhecido. No entanto,
a família sabia e sentia que era ele e o trouxe de volta. Amedrontado, inseguro
pelo passado ainda tão recente, Pedro voltou para casa e, com permissão
especial, entrou para a série em que estaria, não tivesse fugido. Suas notas
foram excelentes nos testes de colocação e ele permaneceu o gênio que sempre
fora.
Chegou o dia da volta para a escola, o momento de encarar a
verdade. Pedro, cabisbaixo, ainda com medo, atravessou o portão e subiu as
escadas, já prevendo os gritos e risos de humilhação. Não poderia estar mais
enganado.
Quando o viram, todos ficaram boquiabertos. Seu corpo, antes
quase esquálido, desenvolveu músculos que se desenhavam sob sua pele. A pele,
graças ao sol diário, perdeu a quase mórbida palidez e ficou corada e sem
espinhas ou cravos, por conta de uma alimentação saudável e o mais natural
possível. Os dentes se ajeitaram com o tempo e a única coisa que não podia ser
corrigida eram os olhos, mas as pessoas concordavam que eles lhe davam algum
charme. Pedrinho Feio não existia mais. Pedrão era um rapaz bonito, a quem as
garotas agora desejavam e de quem todos queriam ser amigos. Aquela menina que o
havia humilhado agora o olhava com interesse e, sem saber dizer não, Pedrão
aceitou ser seu namorado.
Perturbado por tudo aquilo, Pedro foi em direção ao banheiro
e se olhou pela primeira vez depois de tanto tempo. Estava diferente, verdade. No
entanto, ainda se sentia o mesmo por dentro, a ferida não tinha cicatrizado e o
rosto bonito à sua frente não o fazia se sentir melhor. Faltava algo.
Na hora do intervalo, Pedro ouviu risos de deboche e, ato
reflexo, achou que era consigo. Uma rápida olhada ao redor o fez ver que estava
enganado: não era ele o alvo das críticas, mas uma garota que estava a algumas
cadeiras de distância na cantina da escola. Um grupo de garotos e garotas
cercava uma menina e lhe dizia coisas horríveis. Falavam de como seu cabelo não
tinha a cor e o formato correto, de como seu peso não era o ideal, de como seu
tom de pelo fugia do padrão. Era tudo verdade, a menina não se encaixava nos padrões
de beleza artificialmente construídos naquele pequeno universo. Não usava
maquiagem e suas roupas eram diferentes, não condiziam com aquele lugar.
Pedro entrou em pânico, ali, cercado por seus novos fãs e
amigos. O que ele deveria fazer? Deveria se intrometer e fazer algum discurso
que os envergonhasse? Deveria proteger aquela menina de se ferir tanto quando
ele fora ferido? Pedro não conseguia se mexer, a dor no coração voltava e ele
se via naquela menina, sofrendo o que sofrera no passado, mas através dela. Ele
queria interferir, mas não conseguia. A verdade é que nem precisava.
Pedro saiu de sua imobilidade quando a garota nova respondeu
à altura. Ela não se calou diante das injustiças e sua língua sarcástica
combatia ferozmente os deboches e escárnios, os devolvendo com a mesma força
com que os recebia. Ela era ainda mais capaz do que seus inimigos de chocar com
suas palavras e, ao final da discussão, meninas choravam e corriam para o
banheiro com a maquiagem borrada e rapazes seguravam uns aos outros para não a
agredirem fisicamente. Ela vencera a discussão de forma simples, mostrando que
os que a criticavam tinham inúmeros motivos para serem eles mesmos alvos de
crítica.
Duas coisas aconteceram a Pedro quando viu tudo o que havia
acontecido. Primeiro, ele reparou que aquela menina era igual a ele, mas
diferente no que importava: ele tinha a coragem que ele nunca tivera. Ela soube
reagir e não se pôs no lugar de vítima, ela encarava aquele que a queriam
prejudicar olhando em seus olhos, sem abaixar a cabeça para suas opiniões
grosseiras e tentativas de prejudicá-la. Em seguida, Pedro se deu conta de
outra coisa: aquela menina era linda. Ela não seguia os padrões pré-moldados
das meninas da escola. Não se incomodava em ser popular e seu corpo não atendia
a todos os requisitos e parâmetros necessários para ser aceita. E ela não
ligava para isso, não dava a mínima. Aquela menina era autossuficiente o
bastante para não se sentir desgraçada por isso. Ela era especial e sabia
disso. Pedro se apaixonou por ela na hora e, rompendo um compromisso que mal
havia começado, largou sua recém-namorada e foi falar com aquela menina,
juntando a coragem que sabia precisar ter.
A garota, é claro, o olhou como se fosse maluco. O que ele, que seguia os padrões – mesmo que apenas por acidente – estava
querendo ao conversar com ela? Seria mais um a tentar humilhá-la? Queria ele
tentar ganhar seu coração apenas para debochar dela quando conseguisse que ela
se apaixonasse? Pedro penou, mas consegui provar que aquilo não era verdade. Aquele
era seu primeiro dia no colégio depois de uma fuga de dois anos. Apesar da
dificuldade, ele pôde mostrar como era sua verdadeira história. O fato é que,
apesar do exterior durão, aquela menina também tinha uma enorme ferida em seu
coração. Tinha se tornado casca-grossa para protegê-la, para impedir que o
ferimento sangrasse e lhe trouxesse problemas. Não queria ser vulnerável
àqueles que a desejavam o mal. Pedro entendia, mais que isso, ele compreendia.
Após uma longa conversa, Pedro e a garota, cujo nome era
Paula e a quem haviam tentado dar o mesmo apelido carinhoso que a ele – Paulinha
Feia – o que, claro, não tinha funcionado, resolveram que gostavam um do outro.
Paula percebia a vulnerabilidade de Pedro e via que, se sua aparência externa
era bela ou não, não importava. Pedro sentia o mesmo, ainda que ela fosse bela
para ele, seu interior era o mais importante. E a beleza interior daquela
menina, ele percebia, era enorme. Ao se dar conta disso, Pedro percebeu outra
coisa: ainda não estava totalmente sarada, mas tinha começado a cicatrizar. A ferida
em seu coração diminuía de tamanho, graças a Paula. Ele esperava agora ser
capaz de melhorar a que havia no coração dela.